22 setembro 2009

O ungüento das canções de ninar



Alguma coisa aconteceu ontem.

Tem noites que eu me sinto muito sozinha. O dia vai bem. A manhã passa depressa e a tarde sempre me traz de presente algumas horas livres para escrever. E o dia tem o sol que acaba iluminando as minhas sombras, mesmo as mais sombrias. Mas quando cai a noite eu começo a me sentir muito só. Em outros tempos era a minha hora predileta, justamente o momento em que o sol saía de cena e a lua chegava me trazendo inspiração, quietude, reflexão.

Mas ontem aconteceu alguma coisa diferente.

A lua já tinha me trazido as bonecas da escola, exaustas e famintas e com elas a infinita lista de afazeres que se resumem as nossas noites. Eu sei que sou uma mamãezinha para lá de exagerada, mas fazer o que? Chegaram? Jantar, suco, sobremesa. Banho na primeira. Secar os dedinhos do pé, colocar talco, limpar as orelhas com cotonetes falantes, hipoglós, fralda, desembaraçar o cabelo. Banho na segunda – esse com um tanto de briga claro, para entrar e para sair – coordenar a esponja com sabão, o xampu, o condicionador. Depois outra luta para ensinar como se seca sozinha. Outro pijama, outro cabelo para desembaraçar, unhas compridas para cortar. Hora de fazer as camas. Preparar o quarto para dormir. Ligar o abajur. Sim, o Toddy, que ainda por cima tem que ser quentinho e da cor exata se não o freguês devolve... Finalmente escovar os dentes, passar fio dental. Bochecho, o ultimo xixi e cama. Ufa.

Deitei com elas e de novo me bateu aquela dor no peito. Eu as tenho tão perto do meu coração. A solidão que sinto não tem nada a ver com elas, é comigo. É essa solidão de não poder mais compartilhar esse amor nos moldes que sonhei de família. Quando a gente ama desesperadamente os filhos, precisa muito dividir esse amor. Até porque minhas filhas são duas preciosidades. De pijama então, me deixam louca de paixão. Clara e Catarina. Uma, miniatura da outra. Muitas vezes penso em como posso ter feito coisas tão perfeitas. É demais ver as duas agarradas aos seus respectivos ursos de estimação. Clara com Teddy e Catarina com... Teddynho, claro. Dois ursos iguais, só que de tamanhos diferentes, na proporção certa, para cada uma. São crianças de sonho. Devagarinho as vejo se acomodando entre minhas coxas, colo e os tantos travesseiros macios que estão sobre a nossa cama. Exalam um cheiro doce, puro, divino. De olhos bem abertos, me esperam abrir o mágico caderno das canções de ninar.

Sim, foi através dele que ontem aconteceu alguma coisa diferente dentro de mim.

Sempre cantei para as meninas dormirem. Foi uma tradição que herdei da minha mãe e fiz questão de manter. Nunca esqueci a voz dela me encaminhando devagarinho para o mundo dos sonhos. Só que ao longo dos quase sete anos de maternidade, foram tantas as músicas que acumulei no meu repertório, que comecei a confundir as letras e por isso resolvi fazer um caderno, escrito à mão, com uma caneta roxa de glitter, com cheiro de uva.

Ontem eu cantei o caderno inteiro.

E a cada canção cantada, eu dissolvia um pouco o nó que apertava o meu peito. Foi então que eu descobri que nas canções de ninar existe um ungüento mágico e poderoso. Que o som da minha voz cantando aquelas melodias podia fazer um caminho secreto dentro de mim, me levar por um túnel no tempo, para o melhor e mais iluminado pedaço da minha vida, quando eu era pequenininha e não conhecia a solidão. Foi extraordinário.

Hoje eu não tive receio da noite, nem da falta do sol, nem das minhas sombras. Porque eu sei que existe uma luz dentro de mim que ilumina qualquer medo. E nem precisa ligar o abajur. Basta cantar Alecrim, alecrim dourado que nasceu no campo sem ser semeado... o meu amor, que me disse assim, que a flor do campo se chamava alecrim...

11 setembro 2009




“O que for a profundeza do teu ser,
assim será teu desejo.

O que for o teu desejo,
assim será a tua vontade.

O que for a tua vontade,
assim serão teus atos.

O que forem teus atos,
assim será teu destino.”

Brihadaranyaka Upanishad IV, 4.5

10 setembro 2009

As Divinas Azeitonas



Eu só tenho três azeitonas para comer. Apenas três. Elas e uma taça de vinho.
E é nelas que está contida toda a minha inspiração para falar sobre um assunto muito sério para mim: a magnitude das azeitonas. Tenho um amigo que diz que sou muito exagerada no meu uso de adjetivos. Eu concordo. Mas como é que eu vou conseguir me controlar se o que eu quero esta noite é falar sobre azeitona?

Essa tal de Wikipédia revoluciona minha vida. Fui pesquisar sobre as azeitonas e levei um susto quando descobri que as pretas são as verdes envelhecidas. Questão de metamorfose. Gente, eu não sabia disso! Será que todo mundo sabe? Enfim, prefiro senti-las como o vinho... quanto mais amadurecidas, melhor. Sim, porque sempre tive predileção escancarada pelas pretas. As verdes são incríveis, principalmente aquelas gordas. Mas as pretas, ah... as pretas. Elas tem uma maturação no sabor, uma textura carnuda, um paladar visual. Elas me levam diretamente ao Mediterrâneo, ao seu calor e sol e casas brancas com janelas azuis. Dizem as más línguas que é super hiper mega calórico. Imagina só se alguém me vê com um pão entupido de grossas fatias de azeitona na mão? Vão pensar que enlouqueci. Quem liga para caloria quando se é feliz?

Essa coisa de gulodice misturada com avareza é coisa séria. Pecado brabo. Só pode ser. Uma vez eu quase morri por causa de uma azeitona verde. Eu estava dando uma festa de aniversário em casa e obviamente, ganhei de presente um pote de azeitonas verdes argentinas, daquelas enormes. Coloquei numa cumbuca algumas para servir junto dos petiscos. Comi uma. Como duas. Na oitava achei que devia parar. Eu queria prolongar aquele prazer. E no mais, estavam todos avançando na minha azeitona. Pois bem. Coloquei a cumbuca na geladeira e voltei para sala. Alguém pediu uma cerveja e eu fui buscar. Abri a geladeira, peguei a latinha e assim que eu ia fechando a porta, vi aquelas bolotas verdes indecentes olhando para mim. Ah, pensei, vou comer só mais uma... peguei a safada, joguei na boca e ela foi direto para a glote. Nossa Senhora. Aquela coisa se instalou na minha goela, não descia, nem voltava. Fiz de tudo. Me enforquei, tentei virar de cabeça para baixo. Foram minutos de uma angústia profunda. Achei mesmo que ia morrer. Que patético, pensei, morrer entalada por uma azeitona. Quando finalmente consegui fazer a bicha descer garganta abaixo, já tinha até me despedido da vida.

As azeitonas habitam minha alma num andar muito alto, quase cobertura. Lá estão também o milho verde, a canela, o queijo gorgonzola. Mas isso é assunto para outra prosa. Hoje fico aqui com esse último pedaçinho, da última azeitona que me restou. Isso é que é ser feliz com pouco. Ou com nada. Taí! A azeitona é o Tao do Sabor. Tudo e nada numa só bolota. Maravilha...


(Esse texto é dedicado ao meu pai, João Manoel, que é o maior fã que eu conheço - depois de mim - de azeitonas pretas!)

ALGUÉM ME EXPLICA

Por favor, será que alguém pode me explicar o que foi que aconteceu?

Como foi que a gente permitiu essa alucinação e distorção do tempo no nosso dia-a-dia?
Aonde foi que a gente perdeu o controle da vida e deixou que essa invasão bárbara de infinita demanda assumisse o controle do nosso cotidiano?

Eu hoje chorei lavando louça.

E entendi que mesmo fazendo todo o esforço do mundo, nunca vou conseguir dar conta da minha vida. Não dá. Chega a ser patético. Olhar para todas as minhas responsabilidades e funções, depois para todas as minhas aspirações artísticas, espirituais e existenciais e achar que elas podem se encaixar milagrosamente no que tenho disponível de tempo na minha agenda é um sonho inatingível. Olha, eu conheço esse blábláblá de que preciso entender minhas prioridades e de que ser seletiva na vida hoje é a maior de todas as prioridades. Mas poxa, houve um tempo tão mais justo no passado. Tão mais coerente com o organismo da gente. Tempo das nossas avós, que bordavam e faziam bolo. Tempo das conquistas lentas. Do respeito aos ciclos da natureza. Eu sei que sou uma pessoa nostálgica e que luto muito para tentar achar sentido no caos que virou o nosso mundo. É por isso que escrevo. Mas confesso que muitas vezes o que me fica é a impressão de que essa luta pela valorização das relações humanas, pela busca do essencial e do profundo, é uma luta vã.

Outro dia aconteceu uma coisa surreal. Eu já tinha me desfeito da conta do Orkut há um tempão, porque tinha me aborrecido muito com essa nova condição de relação através de scrapbookmessages. Continuo perguntando e ninguém responde. Quem tem 453 amigos? Mas enfim... na semana passada, uma amiga me convenceu a entrar no Facebook. Que era um lugar mais maduro, de gente descolada, internacional... e que seria uma ótima oportunidade de fazer contatos artísticos. Você precisa ficar antenada com o que está acontecendo com o mundo – disse ela. Tá bem. Fui, entrei e em menos de 12 horas já tinha nas mãos o contato e a vida de mais de 30 amigos. Caramba! Amigos que eu morria de saudade, que eu não tinha notícia há décadas... então, curiosa como sou, passei lá três madrugadas querendo desesperadamente saber deles, do que tinha acontecido com cada um, que caminho suas vidas tinham tomado, por onde andavam. Legal. Mas nem todo mundo entra, nem todo mundo responde. Nem todo mundo se compromete, nem todo mundo tá ali. Porque na verdade, nem todo mundo tem... tempo. Aí foi me dando uma angústia, um vazio... Tão cansada que eu tava, tinha perdido três noites desejando um milagre: pescar amigos com uma rede invisível. Saí do Facebook sem nem me despedir de ninguém. Vocês acham que alguém notou? Não, só a minha amiga antenada que tinha me convidado, que se preocupa de verdade comigo e com a minha necessidade de estar em contato com o mundo. Me ligou de Miami, rindo, dizendo que sabia que no fundo, aquilo não tinha nada a ver comigo. Enfim, isso sem falar no Twitter, no Messenger, no Google Talk. Mother Fucker de mundo americanizado!

Eu choro mesmo lavando louça. Choro porque não tenho empregada todo dia, porque podia ser mais espiritualizada e aproveitar para meditar enquanto ensabôo a panela com restinho de feijão. Choro porque tenho filhas divinas e maravilhosas mas que dão um trabalho braçal incrível na idade em que estão. Choro porque queria escrever, estudar, ler tantos livros, assistir os filmes que peguei há dias na locadora e não tive como. Choro porque não priorizo a natação que me prometo desde que fiz 30. Choro porque queria conhecer o mundo e provavelmente não vá conseguir fazer isso a não ser que me torne uma guia de turismo já. Choro porque queria continuar escrevendo aqui por mais tantas horas, mas agora realmente tenho que ir. Ao banco, ao supermercado e finalmente comprar o milho verde que prometo para Clara há mais uma semana e não consigo cumprir.

01 setembro 2009

ANJO MIÚDO




Como posso ser tão cega e não perceber o que essa criança está a horas tentando fazer?

Acordei de madrugada mais uma vez para escrever. A inquietude da minha alma tem me despertado todas as madrugadas, por volta das três horas da manhã como se fosse oito. Resignada, levanto, lavo o rosto, preparo um chá e vou para a frente do computador tentar descobrir o que de tão urgente precisa sair de mim.

Mas nada acontece. Me distraio então com alguma pesquisa na internet, dou uma olhada nos meus emails e me lembro, como um despertadorzinho interno, da maravilhosa declaração de David Lynch a respeito da criação artística: “Se desejamos pegar peixes pequenos, podemos viver em águas rasas. Mas se desejamos pegar peixes grandes, então não escapamos de mergulhar em águas profundas”. Sei bem o que isso significa: meditação.

Meditar para mim é um esforço sobre-humano. Todas as vezes que tento meditar me deparo ainda mais com as turbulentas águas em que transbordam minhas idéias. O contato com essa realidade é assustadora. Somos um povoado de imagens e sentimentos que se misturam violentamente dentro da cabeça. Minha guru diz que a meditação é o único caminho para a paz interna. E que a paz é a única chance que temos de sobreviver ao caos em que o mundo se instalou. Através dela temos a chance de expandir nossa consciência e ir ao encontro da divindade que habita no fundo da nossa alma. Ela diz também que meditação não é nenhum bicho de sete cabeças. Basta sentar-se e permanecer em silêncio. Mas e quem disse que eu consigo ficar em silêncio com todas as urgências gritando dentro de mim?

Pois bem. Estava eu aqui de madrugada debruçada sobre essas questões, quando chega Catarina, minha filha caçula, descabelada agarrada ao seu urso e chamando chorosa por “mamãe, mamãe...” Ai puxa vida, pensei comigo, agora mesmo que a meditação foi para o beleléu. Peguei-a no colo e a coloquei na cama.

- Não mamãe, quero colo.
- Catarina, pelo amor de Deus minha filha, tá de noite, olha só lá fora, o sol ainda não chegou, você tem que dormir...
- Tá, mas no seu colo mamãe.
- Tá bem...

Coloco-a no colo e canto baixinho uma canção de ninar. Minha cabeça continua a ferver. Ansiosa, desejo desesperadamente que ela durma para que eu possa voltar ao meu universo conturbado de tão sérias questões a resolver. Devagar, a acomodo sobre o travesseiro macio. Saio de mansinho. Um minuto depois, ela sentada na cama, de olhos molhados, me chama:

- Mamãe, eu quero você.
- Filha, o que é que tá acontecendo com você meu anjo?
- Mamãe, quero colo.
- Tá bem, eu vou deitar do seu lado.
- Não, eu quero colo. Colo sentada.

Impaciente, saio de novo do computador e a pego no colo. Sento na cama. Ela me olha fundo nos olhos, dá um sorriso, faz um carinho no meu rosto e fecha os olhos. Só então eu compreendo. Meu anjo miúdo de cabelos cacheados tinha saído de sua caminha para vir até aqui me ajudar a meditar. Que burra! Como pude ser tão cega e não perceber o que essa criança estava a horas tentando me dizer? Deitada eu pegaria no sono com ela. Sentada, precisando fazê-la dormir, era uma chance de ouro que eu tinha de entrar em profundo estado de meditação. Bastava fechar os olhos e sentir nossos corações baterem juntos.

Nessa madrugada fiz uma meditação profunda. E agora sentada aqui no computador escrevendo, com o pensamento mais tranqüilo, percebo um barulhinho que vem da janela e que me chama a atenção. Olho depressa. É um passarinho, outro anjo miúdo, que me olha através do vidro da janela. O que ele veio me dizer eu já sei: não existe um caminho para a paz. A paz é o caminho.