23 dezembro 2011

Intercâmbio mágico

Fotografia de Gisele Magalhães

Há magia por todos os lados. Mas nem todo mundo consegue ver.

Quando eu era pequena, os pequenos milagres do mundo atravessavam o meu corpo e brincavam comigo. Não havia espanto com a beleza. Nem estranhamento com a poesia. O que existia era uma profunda compreensão da existência do jeito mais simples de se compreender tudo: existindo. Assim é o universo infantil. Uma percepção sutil e inteligente de quase tudo. A conexão simples entre o céu que nos abraça e a terra que nos acolhe.

Mas um dia a gente cresce. E ninguém mais te deixa ver as coisas que quer ver nem sentir a vida do jeito que gostaria de sentir. É quando começa o duro processo de bloqueamento do ser. Quando a gente é obrigado a aprender a se conter. Se enquadrar. Obedecer. Dizem que é na infância que a gente cria a sombra, aquele lugarzinho onde moram todos os nossos bichos cabeludos. A sombra se cria porque a gente quer ser o que é, mas se aquilo não se enquadra no quadro chato da caretice adulta, alguém vem e diz: menos fulaninho, menos. E a gente pega aquilo que era mais na gente e esconde. Pronto. Começa então o ardiloso processo de armazenamento de tudo aquilo que em nós poderia ser autêntico - e genial - mas que acaba sendo censurado porque teve algum espírito de porco que veio cortar as nossas asinhas. Sim, na sombra moram os nossos bichos cabeludos, mas também mora a nossa potencialidade mais pura, isto é, aquilo que em nós era magnífico... e que ninguém deixou a gente desenvolver porque precisava se comportar.

Ai que saco.

E olha, tem que entrar no esquema viu, porque senão passa o resto da vida sofrendo sérias retaliações. Já perdi a conta de quantas vezes fui acusada de ser infantil. Como assim você quer correr atrás de vaga-lume? Como assim você quer dançar na chuva? Adultos que ainda tentam ver o mundo com a lente especial da meninice, são e sempre serão acusados de um crime hediondo: imaturidade.

Mas, quando a gente pensa que está tudo perdido, vem a Mãe Natureza e nós dá uma nova chance. Como? Nos dando a incrível oportunidade de colocar criancinhas no mundo. A vida te chama na chincha para crescer – procriar é dar existência a outro ser, ninguém procria sem amadurecimento – mas ao mesmo tempo te dá de brinde uma segunda chance. Você pode olhar para tudo de novo, só que dessa vez, através das lentes coloridas dos seus filhos. Olhar através dos olhinhos deles. Que não deixam de ser um pouco dos seus próprios olhos. Já pensou?

Depois que as minhas filhas nasceram, sinto que voltei a ter permissão de pirar no algodão-doce. E hoje fazemos um intercâmbio mágico, emocionante e curativo. Eu mostro para elas o que há por trás dos desenhos do incenso e da chama da vela e elas me relembram a perfeição das bolinhas de sabão. Aponto o arco-íris no céu e elas me apontam o coelho correndo nos flocos das nuvens. Juntas descobrimos que o mesmo vento que faz a gente rodopiar é o vento que varre o pensamento. E é o mesmo vento que toca o sininho e faz a pipa voar. Se ensino para as duas que dentro dos potinhos de tinta moram um monte de desenhos escondidos, elas me ensinam em que flores no jardim tem cada uma daquelas cores.

Outro dia ouvi Clara dizendo para uma amiga no condomínio: Minha mãe é a única mãe no mundo que deixa a gente tomar banho de chuva." A menina respondeu: "Não é não. A minha também deixa, as vezes. "É, mas ela não toma banho junto com você, toma?"

Há magia por todos os lados. Não consegue enxergar? Faz um neném.

06 dezembro 2011

Eu já tenho


Outro dia olhei para o meu pé e me dei conta de uma certeza avassaladora: eu já tenho um joanete.

Eu já tenho manchas brancas na pele. Brancas e beges. Daquelas que as velhinhas alemãs têm aos montes.

Eu já tenho varizes nas pernas.

Eu já tenho manias.

Mania de tomar chazinho antes de dormir. Mania de passar creme no cotovelo antes de dormir. Mania de dormir na frente da tv.

Surdez eu sempre tive. Isso não é novidade. A novidade agora é colocar o papel bem longe para ler. Isso eu acho graça. Ria da minha mãe quando ela fazia isso e ria. Agora sou eu que posso rir de mim mesma. E olha que eu já tenho um óculos para perto.

Eu já tenho uns cansaços esquisitos, uma dor no joelho misteriosa e uma câimbra na costela esquerda desde a última gravidez.

Eu já tenho rabugices. Detesto quando os homens da minha casa fazem xixi e não fecham a tampa de volta. Me irrito quando abro a geladeira e não tem água gelada nas garrafas, mesmo não gostando de tomar água gelada. Reclamo baixinho sempre que posso. Resmungar é uma rabugice deliciosa de fazer.

Eu já tenho muitas histórias para contar que aconteceram há mais de duas décadas. Tá. Há mais de três. E isso de vez em quando me assusta.

Eu já tenho rugas nos olhos.

Eu já tenho filhas que me aconselham, sobrinhos que namoram e uma avó que nunca mais lembrou de mim.

Eu já tenho cabelos brancos. E levo um susto cada vez que o cabelo ruivo cresce e eu me dou conta de que não sou ruiva e no meu couro cabeludo mora uma grisalha que eu nem conheço.

Eu já tenho isso tudo e nem fiz quarenta anos.

para Renata Pivatelli
minha amiga querida e futura geriatra.