22 maio 2012

Eu era madame e não sabia




















Marly foi embora.

E com ela todo um tempo de monarquia doméstica onde vivi os últimos quinze anos da minha vida. Não foi ela que quis ir embora. Fui eu que a demiti, por razões logístico-financeiras muito complicadas para serem explicadas aqui. Mas só hoje, um mês depois de sua partida, é que eu me dou conta da dimensão dramática do que isso significou para a minha vida.

Dos tempos áureos de Rainha do Lar hoje só me restam alguns trapinhos velhos, muitas tupperware sem tampa, algumas vassouras esgarçadas e a certeza de ter sido somente uma Maria Antonieta para o meu pobre reino nesses últimos anos. Sinceramente, eu não sabia de nada do que se passava por aqui. Abastecia a dispensa de brioches e achava que isso já era o suficiente.

Empregada doméstica é uma faca de dois legumes. Ela cuida de tudo para nós, é uma maravilha. Toma posse das funções maçantes do dia-a-dia, limpa-lava-e-passa, te alimenta, dirige sua vida e te enche de ilusões do quanto você é livre. Mas a coisa não é bem assim. O preço que se paga por essa liberdade é bem maior do que um salário mínimo e taxas. Para ter uma auxiliar administrativa cuidando de tudo que é nosso, a gente paga o preço incalculável de distanciar-se de tudo aquilo que nos restaura e fortalece, isto é, o nosso próprio lar.

Lar. Uma palavra tão pequena e tão querida. Palavra quentinha, macia e cheirosa. Que traz em si - imagine - todo o conceito de conforto existencial. Mas se a nossa casa é o nosso abrigo mais precioso, não seria mais correto cuidarmos nós mesmos dela? Desde que Marly foi embora fui obrigada a voltar a olhar para tudo do meu cotidiano com um novo enfoque. Olhar - não só no sentido de enxergar - mas num sentido de examinar tudo ao meu redor com mais profundidade, como se pela primeira vez em muitos anos, eu pudesse voltar a observar o espaço onde habito. Sabe quando a gente passa muito tempo viajando e quando volta, tudo parece diferente? Pois é. Essa foi a sensação que eu tive na primeira segunda-feira que me vi cara a cara com a minha casa super ultra mega bagunçada do fim de semana.

Tenho quase certeza de que segunda-feira é um dia complicado para todo mundo. Quando tudo precisa voltar para o lugar e a nossa alma ainda está cochilando a soneca de domingo. A gente precisa pensar no cardápio da semana, fazer supermercado, trocar a roupa de cama, as toalhas, fazer faxina, colocar a casa em ordem. Nossa, as minhas segundas-feiras sempre foram dias muito difíceis para mim. E a coisa toda agora piorou muito já que não tenho mais a minha salvadora virando a chave da porta bem cedinho de manhã, para tomar as rédeas do caos que eu mesma criei.

Eu não tenho mais essa salvação. Não tenho mais Marly. Agora sou só eu. Eu e Deus. E Agepê no som, porque se é para fazer faxina que seja ouvindo Agepê. Descobri que varrer a casa cantando “Deixa eu te amar” dói menos. Bem menos. E assim eu tenho passado o meu tempo: batendo cabeça, tentando me entender nas funções, cantando para não chorar. Fazendo listas e mais listas do que preciso fazer. Tentando priorizar o essencial, mas perdendo um tempo enorme limpando dispensa, arrumando armário, jogando muita coisa fora. Numa boa, empregada tem uma mania muito estranha de guardar coisinhas. Paninhos, potinhos, tampinhas. Ferrinho de amarrar pão. Pedacinho de Bombril. Eu odeio Bombril! No dia que Marly foi embora joguei fora todas as bolinhas de Bombril enferrujadas que ela guardava. Troço nojento.

E agora – agora assim muito recentemente - eu tenho percebido uma mágica acontecer. Depois de ter mexido na casa toda, deixado tudo do meu jeito, com a minha energia, passei a fazer as coisas com um cuidado diferente. Tipo: quando vou passar roupa, passo roupa fazendo disso um momento único. Nada de mau humor ou má vontade. Se é para passar roupa, que seja com tempo e calma. Porque assim aproveito um pensamento amarrotado e passo também. Cozinhar? Hora de mergulhar nas cores dos legumes e no perfume dos temperinhos. É para picar cebola? Então faço isso com gosto. Viajo na cor da cebola, no jeito da cebola, nessa coisa dela me fazer chorar. E aproveito pra chorar aquele choro que tava escondido em mim e eu nem sabia. Lavar louça? Essa parte é difícil, porque eu não gosto muito de lavar louça. Mas to reaprendendo. Lavar louça é um pretexto danado de bom para lavar saudade. Ou um sentimento ruim. O detergente tem feito milagre nas minhas agonias. É isso. Descobri que qualquer ação feita com devoção é uma espécie de meditação. E se eu sempre precisei desse momento de pausa para me equilibrar e nunca encontrei por falta de tempo, agora foi o tempo que encontrou um jeito de cuidar de mim. Sem cobrança, sem aflição. Só com sabão, vassoura, esponja e esfregão.

Marly foi embora. E dela agora só me resta a saudade de duas coisas insubstituíveis: o abraço que ela me dava quando eu tava triste e o seu incrível pudim de leite. O mais macio e perfeito pudim de todos os tempos. 

16 março 2012

Insensatez Existencial



Eu tenho muito, muito medo de ficar louca.

Minha mãe costuma dizer que as pessoas que tem medo de enlouquecer são as que seguramente não ficarão. Eu duvido um pouco. Não acho minha mãe uma pessoa muito normal.

Não que isso seja uma coisa ruim. Muito pelo contrário. A loucura me soa como uma liberdade estarrecedora. Uma contravenção permissiva e heroica na qual se pode tudo, sem limites. E é aí que mora o perigo. Entre a estabilidade da sanidade e a curiosidade do desvario há uma linha muito tênue que pode romper-se a qualquer passo desequilibrado.

O medo da loucura sempre me traz uma sensação estranha de que, a qualquer momento, posso ultrapassar essa linha e não conseguir voltar mais. É um medo bonito. Um medo quase poético de constatar a insensatez da vida.

Outro dia soube de um conhecido que se matou. As notícias de suicídio sempre me deixam perplexa. É preciso muita coragem para tomar essa decisão de interromper a vida. E o que me abate profundamente é imaginar o sofrimento que essa pessoa deveria estar passando. Acho muito compreensível que alguém um dia, simplesmente não consiga mais dar conta da vida.

Eu vivo um conflito diário para tentar dar conta da minha. De verdade. Estou sempre em luta comigo mesma para não sucumbir. Viver antigamente parecia mais fácil. Mas hoje, com tanta informação sobre os acontecimentos do planeta, a sensação que me dá é que tanta injustiça, tanta dor, tanta miséria, tanta desigualdade, tanta crueldade, tanta sombra... não vai caber dentro de mim. Minha terapeuta está sempre tentando me acalmar. Dizendo que a vida é essa eterna dualidade mesmo. Que há sombra, mas também há luz. Que há noite, mas também há o dia para tentarmos sempre, equilibrarmos esse fantástico sistema onde vivemos.

Bom, eu me recuso a viver uma vida medíocre.  Mesmo que tenha que pagar um preço altíssimo por isso. Mesmo padecendo mais do que aqueles que ignoram, mesmo tendo que sofrer preconceitos por jamais me acostumar à grandiosidade e magnificência da vida, ainda assim, eu prefiro estar fora do padrão. E ser chamada de doida muitas vezes por aí.

Estar vivo é um milagre. Como é que eu posso achar as coisas normais? Como é que querem me convencer de que vivemos todos, uma única realidade? O que é realidade? Aquilo que é relativo a concreto? Mas com que concretude se pode afirmar o que é e o que não é verdadeiro? A verdade é tão relativa. Nada tem muito explicação ou coerência. Cá entre nós minha gente, o buraco dessa vida é bem mais embaixo e é justamente isso que me apavora.

Que nunca nada nem ninguém me faça perder o espanto. Mesmo com toda a contradição da vida, seguir a vida bordando doidice ainda é a melhor escolha. Mesmo com todo medo que eu tenho da loucura.

Antes pinel do que múmia paralítica.