Marly foi embora.
E com ela todo um tempo de monarquia doméstica onde vivi os últimos quinze anos da minha vida. Não foi ela que quis ir embora. Fui eu que a demiti, por razões logístico-financeiras muito complicadas para serem explicadas aqui. Mas só hoje, um mês depois de sua partida, é que eu me dou conta da dimensão dramática do que isso significou para a minha vida.
Dos tempos áureos de Rainha do Lar hoje só me restam alguns trapinhos
velhos, muitas tupperware sem tampa, algumas
vassouras esgarçadas e a certeza de ter sido somente uma Maria Antonieta para o
meu pobre reino nesses últimos anos. Sinceramente, eu não sabia de nada do que
se passava por aqui. Abastecia a dispensa de brioches e achava que isso já era
o suficiente.
Empregada doméstica é uma faca de dois legumes. Ela cuida de tudo para
nós, é uma maravilha. Toma posse das funções maçantes do dia-a-dia, limpa-lava-e-passa,
te alimenta, dirige sua vida e te enche de ilusões do quanto você é livre. Mas
a coisa não é bem assim. O preço que se paga por essa liberdade é bem maior do
que um salário mínimo e taxas. Para ter uma auxiliar administrativa cuidando de
tudo que é nosso, a gente paga o preço incalculável de distanciar-se de tudo aquilo
que nos restaura e fortalece, isto é, o nosso próprio lar.
Lar. Uma palavra tão pequena e tão querida. Palavra quentinha, macia e cheirosa.
Que traz em si - imagine - todo o conceito de conforto existencial. Mas se a
nossa casa é o nosso abrigo mais precioso, não seria mais correto cuidarmos nós
mesmos dela? Desde que Marly foi embora fui obrigada a voltar a olhar para tudo
do meu cotidiano com um novo enfoque. Olhar - não só no sentido de enxergar -
mas num sentido de examinar tudo ao meu redor com mais profundidade, como se
pela primeira vez em muitos anos, eu pudesse voltar a observar o espaço onde
habito. Sabe quando a gente passa muito tempo viajando e quando volta, tudo
parece diferente? Pois é. Essa foi a sensação que eu tive na primeira segunda-feira
que me vi cara a cara com a minha casa super ultra mega bagunçada do fim de
semana.
Tenho quase certeza de que segunda-feira é um dia complicado para todo
mundo. Quando tudo precisa voltar para o lugar e a nossa alma ainda está
cochilando a soneca de domingo. A gente precisa pensar no cardápio da semana,
fazer supermercado, trocar a roupa de cama, as toalhas, fazer faxina, colocar a
casa em ordem. Nossa, as minhas segundas-feiras sempre foram dias muito
difíceis para mim. E a coisa toda agora piorou muito já que não tenho mais a minha
salvadora virando a chave da porta bem cedinho de manhã, para tomar as rédeas
do caos que eu mesma criei.
Eu não tenho mais essa salvação. Não tenho mais Marly. Agora sou só eu.
Eu e Deus. E Agepê no som, porque se é para fazer faxina que seja ouvindo Agepê.
Descobri que varrer a casa cantando “Deixa eu te amar” dói menos. Bem menos. E
assim eu tenho passado o meu tempo: batendo cabeça, tentando me entender nas
funções, cantando para não chorar. Fazendo listas e mais listas do que preciso
fazer. Tentando priorizar o essencial, mas perdendo um tempo enorme limpando
dispensa, arrumando armário, jogando muita coisa fora. Numa boa, empregada tem uma
mania muito estranha de guardar coisinhas. Paninhos, potinhos, tampinhas.
Ferrinho de amarrar pão. Pedacinho de Bombril. Eu odeio Bombril! No dia que
Marly foi embora joguei fora todas as bolinhas de Bombril enferrujadas que ela
guardava. Troço nojento.
E agora – agora assim muito recentemente - eu tenho percebido uma mágica
acontecer. Depois de ter mexido na casa toda, deixado tudo do meu jeito, com a
minha energia, passei a fazer as coisas com um cuidado diferente. Tipo: quando
vou passar roupa, passo roupa fazendo disso um momento único. Nada de mau humor
ou má vontade. Se é para passar roupa, que seja com tempo e calma. Porque assim
aproveito um pensamento amarrotado e passo também. Cozinhar? Hora de mergulhar
nas cores dos legumes e no perfume dos temperinhos. É para picar cebola? Então
faço isso com gosto. Viajo na cor da cebola, no jeito da cebola, nessa coisa
dela me fazer chorar. E aproveito pra chorar aquele choro que tava escondido em
mim e eu nem sabia. Lavar louça? Essa parte é difícil, porque eu não gosto
muito de lavar louça. Mas to reaprendendo. Lavar louça é um pretexto danado de
bom para lavar saudade. Ou um sentimento ruim. O detergente tem feito milagre
nas minhas agonias. É isso. Descobri que qualquer ação feita com devoção é uma
espécie de meditação. E se eu sempre precisei desse momento de pausa para me
equilibrar e nunca encontrei por falta de tempo, agora foi o tempo que
encontrou um jeito de cuidar de mim. Sem cobrança, sem aflição. Só com sabão,
vassoura, esponja e esfregão.
Marly foi embora. E dela agora só me resta a saudade de duas coisas
insubstituíveis: o abraço que ela me dava quando eu tava triste e o seu incrível
pudim de leite. O mais macio e perfeito pudim de todos os tempos.
É, mais de DOIS meses sem escrever! Então quer dizer que o negócio aí tava bravo mesmo! Hoje em dia, ter empregada realmente tem que valer muito a pena, porque é um serviço muito caro e normalmente não se apresenta a altura. É coisa de 'madame' mesmo. Mas você vai ver, logo se acostuma.
ResponderExcluirOlá meu amigo querido. Como é bom te ler por aqui, sempre! Sim, quero me acostumar a cuidar de tudo que amo com devoção. Beijo com saudade!
ExcluirNossa Tati este texto caiu como uma luva. Tem dias que acordo e meu unico desejo era ter pelo menos uma faxineira. Sempre tive alguém para me ajudar 2 vezes na semana, claro q elas não davam conta e eu sempre tive que nos outros dias cair dentro, e como você busco fazer isso com prazer, afinal é minha casinha, minha família, amo cuidar. Porem, estou, ja tem uns bons meses sem ninguém também. E é foda, a louça parece o gremelins, lava uma aparece dez, arruma aqui ali ja ta tudo sujo, e ainda trabalho fora, pelo menos tenho as manhãs para cuidar da casa, mas nunca da tempo. Fazer comida todo dia é massante, nada mesmo como uma administradora do lar nessas horas. Passar roupa amiga, desisti depois do primeiro mês, tudo dobradinho e guardadinho no ármario rsrs
ResponderExcluirO que é o bombril guardado,
uso ele umas vez e lixo! uahau
Adorei o texto flor, saudades!
Marina, querida! Minha louça também é Gremlin! Hahahaha Adorei essa imagem. Pois é. Só passo roupa porque adoro, mas já aprendi que os pregadores de roupa são os grandes vilões! Também tenho saudade, amiga. Obrigada pela visita! Beijos!
Excluireu curto também amiga, simplesmente não dou conta do recado. é muita roupa, muita coisa aff rs
Excluiragora o melhor é quando vc diz:
salvadora virando a chave da porta bem cedinho de manhã
Nossa como eu amava essa sensação do barulho da chave rsrs
vamos nos ver quando hein?
Ai, q delícia esse post! Inspirador! Uma atitude bem budista essa de estar presente nas pequenas coisas... Tô num período de espera: de bebê e da casa nova que vai entrar em obras e não vejo a hora de ter que cuidar de todas essas tarefas que fazem parte do pacote LAR.
ResponderExcluirAmei!
Bjs,
Liu
Liu, minha querida! De bebê! Que noticia ma-ra-vi-lho-sa! Agora você vai mergulhar de vez na magia do lar. Que alegria! Você é sempre muito bem-vinda aqui. Sua presença no blog é sempre tão carinhosa... Um beijo com todo o amor para você e sua barriga-luz!
ExcluirMinha linda, que texto! Adorei os pensamentos amarrotados, estou com uma pilha deles precisando ser passada. A melhor parte de tudo isso é ao final do dia olhar o resultado sentindo o corpo cansado mas a alma lavada e passada. Beijos enormes, Iane
ResponderExcluirIane, querida! Que saudade de você! Sim, nada como ter a alma lavada e passada... Obrigada pela visita, sempre. Beijos!
ExcluirOi amada! Eu bem entendo, mas como vc disse o preço de não ser dona na própria casa é muito alto. E com certeza o tempo precioso que "perdemos" com a função doméstica deve ser também precioso. Muito obrigada pelas lindas palavras, (tiradas da minha mente, rsss).
ResponderExcluirSaudades minha amada e boa sorte nessa empreitada. Mas como diz a minha mãe todos sobrevivem a ela.
Om namah shivaya
Micka
Oi irmã! Como diz Madre Teresa de Calcutá "qualquer ato de amor, por menor que seja, é um trabalho pela paz". É assim que quero levar essa nova vida... deixando em tudo que faço, uma impressão de amor. Muita saudade também! Que bom que você veio! Beijos!
ExcluirTati! Que lindo! Sabe que eu também tenho tentado aos poucos simplificar a minha vida... bjs!
ResponderExcluirOi Ju. Obrigada pela sua visita. Estou com saudade dos seus textos! Sim, simplificar a vida... essa é a sabedoria que a gente precisa buscar! Beijos!
ExcluirVc pagava apenas um salário mínimo? Fico pensando, quem tem coragem de pagar a um outro ser humano a quantia de 650 reais por 30 dias de trabalho...
ResponderExcluirNo caso Marly não trabalhava 30 dias, já que não trabalhava aos sábados, domingos nem feriados. Mas não resta dúvida de que um salário mínimo para esta função divina é muito injusto. O pior é que agora nem "apenas um salário mínimo" ela recebe mais.
ExcluirMeu Deus, Tati!!! Que mundo vive uma criatura, nesse país de meu Deus que é o nosso Brasil, que acredita que a maior parte da população ganha mais que um sslário mínimo por mês????!!!!!!
ExcluirAh, uma madame!!!! Vai trabalhar!!!!
Te amo, minha amiga.... Seus textos são maravilhooooooosos.
Karla Araujo.
Um dos melhores textos dos ultimos tempos. Uma viagem pausada e cuidadosa, a este lugar comum em todos nós- das angustias, segredos, alegrias unicas do cotidiano - e a instintiva ordem de se agarrar na oportunidade de reverter a dessensibilizacao da vida moderna... Voce tem um dom, e nós leitores, ficamos sempre querendo mais! ~OM~
ResponderExcluirAssino embaixo...
ExcluirBjs
Beth
Ahow! Beijos Beth querida!
ExcluirQuem dera!!!!
ResponderExcluirPois é, minha querida... Quando decidi que seria mãe e dona de casa ouvi tanta gente dizer: "Você não vai conseguir. Vai ter que ter uma empregada". E cansa mesmo. Mas também te dá tudo aquilo que você acaba de escrever. Agora compreendes, ã, o quão poderosa é esta função? Paradoxalmente, agora quem volta a trabalhar sou eu, kkkkk. Beijos eucalípiticos!
ResponderExcluirAninha, amiga querida... eu sempre fui sua fã nessa jornada dupla de ser mãe e rainha do lar. Volta a trabalhar fora? Que ótimo! Fora ou dentro, estamos sempre na luta não? Um beijo e um abraço muito apertado querida.
ExcluirAmei muito seu texto. É isso aí:fazer do limão uma deliciosa limonada..bjkas
ResponderExcluirRe
Rê, queridíssima... deu saudades da Nil não deu? Que bom que você veio. Um beijo de amor!
ExcluirTati você arrasa, amei o texto! Sabe que desde pequena quando minha mãe pedia ajuda eu dizia: ajudo a pagar uma faxineira! Acho que foi por isso que fui trabalhar tão cedo. Definitivamente não tenho a menor habilidade para cuidar da casa e não gosto, confesso. Minha empregada não faz milagres, mas eu sou tão péssima dona de casa que nem vejo o que ela não faz, meu marido é quem me avisa... Mas nunca sabemos o dia de amanhã, se eu tiver que virar dona da minha casa, que seja como você! Bjs
ResponderExcluirBianca querida! Quem tem um marido atento assim, não precisa de mais nada! Hahahaha Beijos e obrigada pela visita!
ExcluirEmpregadas apenas limpam a casa, não *cuidam* da casa. Quem cuida da casa são os donos. Ótimo texto. Beijo!
ResponderExcluirPatrícia, seja bem-vinda! Vou precisar discordar de você: Marly não só limpava como cuidava de tudo também. Por isso eu adorava chamá-la de auxiliar administrativa. E nem todo dono da casa cuida de sua própria casa. Esse é o grande paradoxo! Não é? Beijos!
ExcluirUm texto sensacional! Um presente pra cada mulher de hoje poder repensar sua relação com essas tarefas que já foram quase pejorativas até pouco tempo atrás. Vivemos novos tempos que obrigam a novas contemplações do que é, verdadeiramente, o feminino sagrado. Me veio a imagem de Adélia Prado que, segundo li em algum lugar, também cuidava da casa e escrevia seus textos entre uma tarefa e outra, entre panelas e roupas, entre filhos e marido, um poema aqui, uma prosa acolá.
ResponderExcluirAdoro ver você cumprindo com devoção a sua missão de nos ajudar a refletir sobre nossas próprias questões. Saudo a deusa Héstia que vive em você! Beijos da Mami
Ahow mama mia! Que bom te ler por aqui. Muita coisa foi você mesma que me ensinou... E eu tenho muita gratidão por isso. Pena que a gente demore um tempo tão imenso - necessário - para entender as coisas. Te amo!
ExcluirTati...!!!
ResponderExcluirQue delícia de reconexão com o lar!
Beijoca saudosa,
Livia
Olá Tatiana, bom dia!
ResponderExcluirObrigada por dividir e escrever tão bem suas e nossas aflições dentro de uma casa/lar, quando temos que tomar as rédeas no "teor da palavra" bjs e bjs....muito bom!
Tati querida, vem acontecendo isso em minha vida também...ontem aconteceu uma mágica, sinceramente, após meditar tanto limpando as madeiras da janela com óleo de peroba, (algo que, confesso, ainda não havia feito desde que me mudei para esta casa nova há alguns meses), consegui traçar todo um plano de negócios para um empreendimento novo e praticamente resolver a minha vida! Hilário, mas é a pura verdade. Concentrada há tempos na frente do computador, não havia experimentado tanta clareza quanto a do ato da faxina com o óleo de peroba!!!! Beijos!!!!
ResponderExcluirTati, você me falou do seu blog na ula, fui ver e ameei muito! Totalmente perfeito!
ResponderExcluirBeijos
Crítica construtiva: a expressão correta é faca de dois gumes.
ResponderExcluirSimplesmente fantástico o texto. Me fez pensar em algumas coisas da minha vida, tem algumas mensagens muito legais por trás de sua história. É de uma sensibilidade unica. Parabéns, acho que serei um leitor assíduo desse Blog :))
ResponderExcluirMaravilhoso dom que vc tem de escrever.
Bjo