27 novembro 2009

Minha menina do arco-íris


Minha pequena acordou triste hoje.
Tomou café e ficou quietinha num canto da casa, sem sorrir, sem fazer bagunça, com o olhar perdido em algum lugar. Perguntei uma, duas, outras tantas vezes o que tinha acontecido para ela ficar tão triste. Ela não sabia responder.

Desmarquei todos os meus compromissos. Disse para ela:
Hoje você vai passar o dia comigo, mocinha.
Ela levantou os olhinhos e sorriu. Um sorrisinho mixuruca, mas sorriu.

Fomos ao cinema, comprei pipoca gigante, balinha, chocolate. Depois saímos de lá e ela se queixou de dor na barriga. A levei de cavalinho pelo shopping até uma sorveteria. Como eu imaginava - ela estava com dor - mas não tanta dor a ponto de negar um sundae.

Mamãe, quero ir para casa.
Fomos. Chegando ela se deitou na cama e continuou quieta. Comecei a ficar realmente preocupada. Tirei do coração uma última cartada para tentar alegrá-la.
Já sei filha, vamos desenhar...

Peguei um monte de papel, lápis de cor, pilot, meu super bloco de papel canson, e sim... meu adorável estojo de giz de cera pastel que ela adora. Sentamos juntas e começamos a desenhar. Em silêncio. Eu tinha certeza de que alguma coisa ia acontecer ali. Ou ela ia se abrir comigo ou os próprios desenhos iam me dizer alguma coisa sobre o que estava acontecendo.

Devagarinho, ela foi puxando papo. Gostava mais de falar mal dos meus desenhos do que de prestar atenção nos dela. Começou a rir das coisas horrendas que eu desenhava. Até que disse baixinho: Mami, desenha um arco-íris vai... é o que você faz de melhor...

Obedeci imediatamente. Peguei as cores no giz pastel, separei uma folha em branco e reparei que ela fez o mesmo. Então juntas começamos a desenhar, cada uma, o seu arco-íris. Óbvio que eu não aguentei e comecei a cantarolar somewhere over the rainbow... e ela comigo... até que me deu uma coisa e eu disse: Quer saber? Vamos fazer esse arco-íris nas nossas paredes filha! Você no seu quarto e eu no meu.

Foi então que a mágica aconteceu.
Coloquei para tocar bem alto a música para que as duas ouvissem, cada uma em seu espaço. Ela lá projetava fervorosamente suas cores. E eu, cá no meu canto, pintava o meu arco-íris assistindo emocionada o que acontecia com ela. Minha pequena foi se transformando em luz em cada cor que pintava na parede. Do roxo para o vermelho, uma risadinha. Do vermelho para o laranja um grito: como é que tá indo aí? Do laranja para o amarelo ela veio correndo e me deu um beijo. O seu tá tá lindo, mãe! Do amarelo para o verde... uma gargalhada... a gente tá ficando toda colorida filha... do verde para o azul, ouvi ela assobiar no quarto. Cheguei devagarinho e a vi, parada em frente à sua majestosa obra de arte, de olhos brilhantes e a alminha lavada.

Foi quando ela me viu na porta, correu pra me abraçar e disse:
Mãezinha, põe a música de novo... vamos dançar?

15 novembro 2009

As Máximas da Clara

Estávamos no táxi, voltando da escola.
Cantando como sempre, para passar o tempo.

- Vamos cantar aquela da Noviça Rebelde mãe... Do, re, mi...
- Ah tá bem.
- Vai.
- Vai o que?
- Começa aquela parte Do, a deer a female dear...
- Ah tá.
- Do, a deer a female deer, Re, a drop of golden sun…
- Não mãe, você fica no dooo... enquanto eu canto a letra.
- Ah tá... doooooo… a deer a female deer…
- Não mãe!
- Mas você tá demorando para entrar.
- Presta atenção mãe, você canta as sílabas da cantura, eu canto a letra.
- Como é que é minha filha? Você quer dizer as notas musicais?
- É ué, as sílabas da cantura!

03 novembro 2009

SER OU NÃO SER: a questão essencial



Tenho um amigo que diz que eu devia deixar de lado as crônicas e mergulhar mais fundo no universo da ficção. Que eu poderia dar voz a muitos personagens, que através deles eu poderia ser, existir e sentir tudo que quisesse com uma tremenda liberdade e que essa coisa que recorrer demais às próprias experiências no fundo no fundo, é uma atitude um pouco egocêntrica e infantil. Principalmente quando se faz tanta referência, como eu, à própria infância.

Esse tal amigo é uma pessoa a quem amo e respeito profundamente, por isso que tais palavras me fizeram refletir um bocado sobre o assunto. A ficção, como forma de expressão literária, é uma coisa distante de mim. Apesar de estar em constante processo criativo, ainda não consigo pensar em fazer tal alquimia de transformar o que sinto, para um outro alguém sentir, mesmo que esse outro alguém seja eu. Esse ato requer coragem e ousadia. Furar essa dimensão é um caminho sem volta. No mais, o que escrevo me sai como inflamação. Gosto que essa dor me pertença. Só assim vejo a possibilidade de transformá-la.

Teve uma vez - uma única vez - que o que eu sentia era tão forte e tão secreto, que eu inventei uma Tereza para passar por tudo aquilo. Me soou tão falso. Tava na cara que aquela mulher era eu, muito mal disfarçada de mim. Sei lá. Eu ainda não consigo achar visceral essa necessidade de inventar personagens. Tanta coisa ainda para sair da minha carteira de identidade. Minha construção ainda é involuntária. As idéias me saem como um jorro de pensamento. Quanto menos apurado, mais funciona. Meus textos são uma busca desesperada por sentido. De que vale nesse momento nomeá-los, se o que busco de verdade é olhar para dentro da minha alma e ver o que há refletido nela?

Esse assunto me interessa tanto que outro dia tive um sonho com uma mulher, uma cega. Acordei, olhei para a noite que ainda não tinha virado dia e falei: Janete. O nome dessa mulher é Janete. Isso só podia ser o embrião de um primeiro personagem! Mas vamos combinar que no quesito sonhos, sou praticamente uma Akira Kurosawa. Se tivesse escrito tudo que já sonhei, provavelmente já teria um livro de ficção publicado. Todos tem início, meio e fim. E os ingredientes básicos de um best seller de sucesso: aventura, intriga, paixão, violência, sexo, muito sexo. Meus filmes, opa, quero dizer, meus sonhos, tem cenas eróticas de colocar Almodovar no chinelinho. Uma delícia. Achei uma forma extraordinária de realizar fantasias! Isso é que ter um inconsciente amigo...

Tenho uma coleção enorme de crônicas: Rubem Braga, Fernando Sabino, Rubem Alves, Carlos Drummond de Andrade. Quase todos os escritores que escreveram crônicas, tiveram a mesma urgência que eu tenho. Traduzir com precisão poética o que lhes transbordava dos olhos, fosse por determinada imagem ou um acontecimento qualquer no cotidiano. E engraçado, por mais infantil que pareça, acho natural que todos recorram sempre às suas próprias infâncias... só pode. É lá que mora o material bruto desse olhar, foi lá que a gente viu melhor o mundo, com mais clareza. Vejo isso hoje através dos olhos das minhas filhas. A simplicidade com que elas vêm as coisas é brutal. Nada mais coerente para um cronista mergulhar na própria infância. Só de lá pudemos trazer a referência autêntica do que somos. Pelo menos, do melhor que fomos. Porque se a idade adulta nos traz amadurecimento, ela também nos traz um abrutamento de lascar.

Já dizia Che Guevara
"Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás."

Ele foi um personagem da nossa história, um personagem de carne e osso.
Acho que preciso dizer isso ao meu amigo... que o que eu quero é ser um personagem de verdade, de carne, osso, voz e alma. E que essa voz possa transformar o mundo de alguma forma. Mas que ela saia da minha boca, na verdade que diz meu coração.