03 novembro 2009

SER OU NÃO SER: a questão essencial



Tenho um amigo que diz que eu devia deixar de lado as crônicas e mergulhar mais fundo no universo da ficção. Que eu poderia dar voz a muitos personagens, que através deles eu poderia ser, existir e sentir tudo que quisesse com uma tremenda liberdade e que essa coisa que recorrer demais às próprias experiências no fundo no fundo, é uma atitude um pouco egocêntrica e infantil. Principalmente quando se faz tanta referência, como eu, à própria infância.

Esse tal amigo é uma pessoa a quem amo e respeito profundamente, por isso que tais palavras me fizeram refletir um bocado sobre o assunto. A ficção, como forma de expressão literária, é uma coisa distante de mim. Apesar de estar em constante processo criativo, ainda não consigo pensar em fazer tal alquimia de transformar o que sinto, para um outro alguém sentir, mesmo que esse outro alguém seja eu. Esse ato requer coragem e ousadia. Furar essa dimensão é um caminho sem volta. No mais, o que escrevo me sai como inflamação. Gosto que essa dor me pertença. Só assim vejo a possibilidade de transformá-la.

Teve uma vez - uma única vez - que o que eu sentia era tão forte e tão secreto, que eu inventei uma Tereza para passar por tudo aquilo. Me soou tão falso. Tava na cara que aquela mulher era eu, muito mal disfarçada de mim. Sei lá. Eu ainda não consigo achar visceral essa necessidade de inventar personagens. Tanta coisa ainda para sair da minha carteira de identidade. Minha construção ainda é involuntária. As idéias me saem como um jorro de pensamento. Quanto menos apurado, mais funciona. Meus textos são uma busca desesperada por sentido. De que vale nesse momento nomeá-los, se o que busco de verdade é olhar para dentro da minha alma e ver o que há refletido nela?

Esse assunto me interessa tanto que outro dia tive um sonho com uma mulher, uma cega. Acordei, olhei para a noite que ainda não tinha virado dia e falei: Janete. O nome dessa mulher é Janete. Isso só podia ser o embrião de um primeiro personagem! Mas vamos combinar que no quesito sonhos, sou praticamente uma Akira Kurosawa. Se tivesse escrito tudo que já sonhei, provavelmente já teria um livro de ficção publicado. Todos tem início, meio e fim. E os ingredientes básicos de um best seller de sucesso: aventura, intriga, paixão, violência, sexo, muito sexo. Meus filmes, opa, quero dizer, meus sonhos, tem cenas eróticas de colocar Almodovar no chinelinho. Uma delícia. Achei uma forma extraordinária de realizar fantasias! Isso é que ter um inconsciente amigo...

Tenho uma coleção enorme de crônicas: Rubem Braga, Fernando Sabino, Rubem Alves, Carlos Drummond de Andrade. Quase todos os escritores que escreveram crônicas, tiveram a mesma urgência que eu tenho. Traduzir com precisão poética o que lhes transbordava dos olhos, fosse por determinada imagem ou um acontecimento qualquer no cotidiano. E engraçado, por mais infantil que pareça, acho natural que todos recorram sempre às suas próprias infâncias... só pode. É lá que mora o material bruto desse olhar, foi lá que a gente viu melhor o mundo, com mais clareza. Vejo isso hoje através dos olhos das minhas filhas. A simplicidade com que elas vêm as coisas é brutal. Nada mais coerente para um cronista mergulhar na própria infância. Só de lá pudemos trazer a referência autêntica do que somos. Pelo menos, do melhor que fomos. Porque se a idade adulta nos traz amadurecimento, ela também nos traz um abrutamento de lascar.

Já dizia Che Guevara
"Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás."

Ele foi um personagem da nossa história, um personagem de carne e osso.
Acho que preciso dizer isso ao meu amigo... que o que eu quero é ser um personagem de verdade, de carne, osso, voz e alma. E que essa voz possa transformar o mundo de alguma forma. Mas que ela saia da minha boca, na verdade que diz meu coração.

6 comentários:

  1. Tenho um palpite sobre a identidade do amigo...

    Adorei seu texto. Simples, limpo, bonito!
    Como a moça que escreve.

    Janete, Tereza, ...

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  2. Lindo e sincero, Tati. Como você: alma de infância carrega de maturidades. Crônica também é ficção de um outro jeito de escrever. Eu, por exemplo. Não sei escrever crônicas. Em tudo que escrevo lá vem meu outro eu e mete alguma invencionice no meio, uma "palavra-passarinho" como você mesma disse sobre um texto meu. Adorei. Escreva menina, escreva você e todos os seus Drummonds que te habitam, pois não é 'onde habita a sua alma'?
    bjs
    Eduardo

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  3. querida, sinto os personagens como um monte de eus dentro de você e que você apenas nomeia e que pode retirar-se da responsabilidade de sentimentos tão ambíguos dando a responsabilidade à eles, pequenos seres que te habitam. não vejo egoísmo nas suas crônicas, talvez só uma necessidade enorme de reconhecer o que é seu, o que você é, e gritá-lo ao mundo com voz assumida sem ter que emprestar-se para ninguém. talvez um dia você se entranhe também no mundo desses pequenos seres dentro de ti e deixe que os aflorem misturando-se com sua história, sentimentos e um pouco de imaginação aqui e acolá, o que não deixa de ser você porque nossa criação reflete também nossos desejos... mas por enquanto, se não sentir vontade, deixe-os lá, guardados na sua alma, essa alma que ao todo é tatiana, sereia, tereza, mulher.

    beijos

    jujuba

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  4. Viva!! Foi inevitavel ler tudinho com os olhos, e o pulsar da Lola!! Ela mesma esta prontinha para colocar este texto amanha mesmo no teatro!

    Quem dera que nos fossemos capazes de pisar com pes firmes, neste ponto: onde somos absolutos em nossa busca! Evitariamos tanta confusao!

    "Não vamos enlouquecer, nem nos matar, nem desistir. Pelo contrário: vamos ficar ótimos e incomodar bastante ainda."

    Caio Fernando Abreu

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  5. Magnífico podermos nos ver através do teu espelho. Você se olha, se mostra e eu me vejo e me entendo. Quando teus personagens surgirem seremos nós que já estaremos habitando tua crônica. E o que dizer dos personagens reais que você nos traz através do teu olhar sobre eles? Serão mesmo reais? O que é ficção? Quem será (seremos) Janete?
    Te agradeço e te amo ainda mais.
    Sou tua personagem Mamotilda

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  6. Me esqueci de comentar a foto (ou será uma pintura?). É magnífica, se casa com perfeição com o texto (como aliás todas as fotos que escolhe). Mas esta foi muito especial pra mim, sabe-se lá porque... Você sabe quem é o autor dela? Gracias por mais este presente.
    Mammy

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