30 setembro 2010

Pão querido de cada dia

Arte de Augusto Amato Neto

Tem coisas que me ajudam a viver. Padaria é uma delas.

Tinha passado o dia todo de pé. Andando quilômetros da cozinha para sala, da sala para o quarto, do quarto para a cozinha. Estava exausta. Meio vesga. Mudança faz a gente ficar meio zureta. Me dei conta disso quando no meio da tarde, percebi que tinha parado tudo para fazer uma faxina na casa da Barbie. Isso porque já tinha vestido e penteado umas tantas bonecas antes. Me sensibilizaram as coitadas, nuas e descabeladas, espalhadas pela casa.

No final do dia resolvi ir à padaria. Precisava sair um pouco. Ver a luz do dia que já estava de saída, respirar um pouco de gás carbônico da Miguel de Frias, sei lá. Ver gente.

Entrei na padaria e dei aquela cafungada funda. Só faço isso quando tenho 100% de certeza de que o odor é confiável. Nas padarias, sempre é. Padaria tem cheiro de colo de mãe. Pãozinho misturado com bolo de fubá. Tem o burburinho dos apressados que estão voltando do trabalho, loucos para chegarem em casa para se livrar de seus sapatos apertados. Tem a risadinha das crianças, hipnotizadas pelos doces e picolés. Tem os solteiros na fila do frango. Tem as vovós tomando sopinha e vendo novela na televisão sem som.

Fui para fila do pão meio anestesiada. Uma dor no corpo. A cabeça bagunçada. A mente passando e repassando a lista de tudo que faltava empacotar. A moça perguntou quantos eu ia querer. Calculei rapidamente o lanche, a fome da madrugada e o café da manhã.

- Quero seis, por favor.

Quando ela me devolveu o pão depois de pesar, percebi que a fornada tinha acabado de chegar. Eles estavam quentinhos! Sem pensar, abracei o pacote e ali mesmo fiquei de olhos fechados, atracada com aquele calor cheiroso e revigorante, sentindo sem querer, uma profunda felicidade. Parecia que aquele instante estava me devolvendo todo o equilíbrio que eu tinha perdido, toda a energia que tinha me esvaziado encher tantas caixas. Encostei os olhos no pacote, depois o rosto todo. Respirei fundo e só então percebi o quanto me sentia só.

Abri os olhos e dei de cara com a mocinha me olhando torto, meio sem graça pela cena de tão explícita paixão. Nem liguei. Fui para a fila do caixa, pagar satisfeita por aquele tesouro incalculável que eu tinha acabado de adquirir.

Tem coisas que me ajudam a viver. Amar é uma delas.

Para Augusto Amato Neto,
meu amigo padeiro.

28 setembro 2010

"Lar é onde seu mel está."



Sempre me senti uma moradora itinerante. Uma cigana nômade cosmopolita.

Mudei dez vezes em oito anos, incluido três estados distintos, desde que saí da casa da minha mãe. E agora, acreditem, vou me mudar de novo.

Toda mudança é uma nova chance de transformação. Principalmente se a gente tem coragem de enfrentar o processo. Mas dessa vez estou com vontade de fazer diferente. Não sei. Ir mais fundo. Tentar mais do que uma mudança de endereço. Ir além de uma alteração física-espacial.

Quem sabe tentar a cura dessa minha eterna sensação de não-pertencimento.

Muitos astrólogos já me disseram que isso não é cisma minha. Que essa sensação está lá, na geometria esquisita dos meus astros. Uma sensação de inadequação somada à de não-pertencimento. Sinceramente, essa quadratura me faz sentir um ET. Deve ser por isso que não me sinto em casa em lugar nenhum. Porque eu simplesmente não sou daqui.

Há quantos anos eu tento preencher esse vazio que me abate. Há quantos apartamentos e CEPs que venho tentando me encontrar? Só agora consigo entender porque me mudo tanto: porque no fundo quero desesperadamente achar o meu lugar.

Talvez o problema não esteja fora. Esteja dentro.

É dentro de mim que a mudança precisa acontecer diferente. Na forma de encaixotar minha história. De me desfazer do que não cabe mais. Aprender a reciclar a vida sob a reveladora perspectiva do que tem e o que não tem sentido. Aprender o que me pesa tanto na mala. Organizar minha bagagem de modo a estar atenta ao que fica por fazer parte de uma nostalgia saudável e o que me faz ficar presa a um passado dolorido, como um carrapato viciadão em naftalina.

O que cabe e o que não cabe mais nessa nova eu? Isso é uma pergunta deliciosa!

Sei bem onde habita minha alma, não vai ser tão difícil assim fazer a conexão de onde pode e deve habitar minha existência.

Que essa nova mudança me traga muito mais do que um novo nome na conta da luz. Que ela represente a instalação de uma Light inteira no meu coração.

P.S. A linda frase do título é do Ursinho Pooh, lembrada por Clara e Catarina quando comecei a encaixotar os brinquedos.

22 setembro 2010

A vida, como ela pode ser

Marcel Marceau (1923 - 2007)


Vinha andando distraída pela rua, paquerando de longe a barraquinha de milho verde, quando dou de cara com um bando de mímicos, em plena Praça General Osório às seis horas da tarde. Eles pulavam de um lado para o outro, abordando as pessoas com um simples cartaz que dizia:


ABRAÇOS GRÁTIS


O pessoal que vinha na minha frente começou a resmungar. Uma senhora correu para atravessar a rua mesmo com o sinal aberto. Um homem com raiva deu meio volta e pegou a direção contrária do que ia.

Eu abri logo um sorriso. Essa eu não podia perder. De longe, abri os braços para uma moça magrinha que tinha um sorriso gorducho. Ela de longe, fez o mesmo movimento que o meu. Quando nos encontramos, alí no meio da rua, nos abraçamos como se fossemos velhas conhecidas. Ficamos assim um tempão. Foi quando ela me disse baixinho no ouvido:

- Ô minha filha, Deus te abençoe.

E eu pensei comigo:

Tá acabando de abençoar!

As Mínimas da Catarina

Saio do banho, Catarina está sentada no banquinho, tagarelando sem parar. Dali a pouco, se cala e começa a olhar fixamente para o meio das minhas pernas.

- Mamãe, o que é isso?
- Isso o que?

Sem entender direito, olho para baixo e vejo para onde seu dedinho está apontando.

- Isso aqui filha, é uma parte da pepeca. Chamam-se grandes lábios.

Apavorada ela pergunta:

- E isso morde?

20 setembro 2010

Liberdade

São Jorge 
Arte de Marta Oliveira


O primeiro movimento é como um pau duro.

Ele é livre e forte e carrega todos os símbolos da ação e da liberdade.

Sento para escrever e dos meus dedos frenéticos começo o bordado alucinado das minhas idéias.

De repente, uma névoa baixa ao meu redor e eu desacelero o rítmo. As idéias começam a se dissipar. A primeira leitura me faz cortar uma, duas, três palavras. Daquela maravilhosa sensação de excitação, vejo surgir de dentro de mim mesma um fantasma censor, onde - pensando bem - onde eu estava com a cabeça em querer começar um texto dizendo que o primeiro movimento é como um pau duro?

Mas pau duro é símbolo do meu animus! Aquela coisa linda que o Jung criou para explicar os arquétipos que existem dentro da gente! A força masculina que habita dentro da mulher e faz com que ela se transforme numa potência energética para sair fazendo mil coisas por aí.

Peraí! Peraí! Pára tudo. Você tá se explicando?!

Eu era muito pequena quando minha mãe me perguntou:
- Você quer saber o que é liberdade? É só olhar para um cavalo correndo.

Perdi a conta da quantidade de palavras que deletei nesses últimos anos aqui no meu laptop. O volume de idéias preciosas que joguei fora por achá-las, um pouco, digamos assim, inadequadas.

Meu Deus do Céu, onde foi na trajetória da minha vida que eu deixei minha alma de égua puro sangue ser substituída por uma burrinha de carga que morre de medo do mundo e do que os outros pensam? Quando foi que esse fantasma que habita em mim se tornou mais forte do que a minha própria força criativa?

Ao meu fantasma e aos censores anônimos, eu esbravejo:

Vou construir um escudo para lutar contra vocês. Ele vai ser cravejado das minhas melhores e mais fortes palavras.

E o primeiro texto vai ser sobre libido. Essa energia poderosa que faz com que todos os paus do mundo se ergam, todas os ventres se inflamem de paixão e criem, porque ela fala essencialmente do que somos feitos: energia primordial criativa.

Lembrei agora que não tenho pau. Mas tenho meu cavalo, um escudo poderoso e dez incríveis espadas cravadas nas minhas mãos. Tô me sentindo praticamente uma versão feminina de São Jorge.

Quero ver quem vai me vencer agora.

Bem-vinda Primavera!


“NÃO
HAVERÁ
BORBOLETAS
SE A VIDA NÃO PASSAR
POR LONGAS E SILENCIOSAS METAMORFOSES”

Rubem Alves

17 setembro 2010

As Máximas da Clara III

Hora de dormir. Quarto escurinho, beijos de boa noite, chamego.
- Mãe, aqui entre nós duas, me explica uma coisa? Por que tem gente que chama o fiófis de cú?
Tive que me segurar para não soltar uma gargalhada e acordar Catarina.
- Ué, deve ser porque é uma palavra pequenininha e feinha, exatamente como ele é.
Dessa vez foi ela que gargalhou. Daquelas gargalhadas que ela dá e a veinha do pescoço pula de alegria.
- Eu sei que cú é palavrão, mãe... mas tem algum nome bonito para ele?
- Humm... ânus.
- Ânus é feio, mãe! Cú é mais simpático.
- Eu sei minha filha. Mas cú é palavrão. A gente não deve falar. É uma tremenda falta de educação.
- Cú não parece palavrão. Parece palavrinha...
Fiquei sem fala. Ela estava coberta de razão. Foi dali que ela começou sua pesquisa linguística antropológica.
- Sei, e qual o nome feio de pepeca?
- Vagina.
- Ah mãe, fala sério. Vagina é o nome técnico. Eu quero saber o palavrão mais horripilante...
Pensei um pouco. Não era justo mentir para ela naquela altura do campeonato. Ela tinha o direito de saber.
- Tá. Buceta.
- Buceta? Mas buceta é bonitinho...
- Clara, pelo amor de Deus minha filha, isso é um palavrão de quinta, não vai sair por aí falando isso e dizendo que fui eu que te ensinei que vão me chamar de louca.
- E se eu chamar minha pepeca só de Ceta, tudo bem?
- Não, não está nada bem. Todo mundo vai saber que é diminutivo de buceta.
- Hum. Então qual é o nome mais lindo para buceta?
- Pepeca filha, pepeca é lindo.
- E para peru?
- Pinto.
- E pau?
- Pau nem pensar. É muito vulgar.
- Mas por que a gente pode chamar o peru de nome de bicho mas nome de madeira não pode?
- Clara, o mundo das palavras é um pouco complicado.
- Tudo bem mãe. Mas o que é grelo?
- Boa noite, Clara!