18 fevereiro 2011

Mini-conto de amor

Ela está parada no sinal, dentro do carro.
Na pista ao lado, pára um outro carro.
Dentro, há um homem lindo, olhando para ela.
Ela desvia o olhar.
Depois de alguns segundos, toma coragem e resolve olhar de novo.
Ele continua a olhar para ela.
É, sem dúvida, é um homem lindo.
De repente, o homem faz uma careta.
Ela leva um susto.
Séria, ela também faz uma careta.
Ele lhe devolve outra careta.
Começam a competir quem faz a careta mais horripilante.
De repente, ele não aguenta e dá uma gargalhada com a última careta que ela faz.
Ela desaba e começa a rir também.
É quando ela descobre que ele tem o sorriso mais lindo que ela já viu.
O sinal abre.
Os dois percebem e se olham.
Atrás, os carros começam a buzinar.
Ele se despede com a olhar, acelera e vai embora.
Ela, nervosa, engata a primeira mas deixa o carro morrer.
Vê de longe o carro indo embora.
Fica tão triste que acaba se sentindo a mulher mais ridícula do mundo.
O carro finalmente pega. Ela engata a primeira e vai embora.
Fim

16 fevereiro 2011

As Máximas da Clara IV

Há semanas vinha falando sobre mesada. Toda hora voltava no assunto. Insistentemente. Até que chegou uma hora que eu cansei.

- Clara, eu não tenho que te dar mesada.

- Tem sim mãe. Você tem.

- Não, minha filha. O que eu tenho que te dar é amor, carinho, proteção, educação, apoio, comida gostosa e fresquinha, cama macia e roupinha lavada todo dia.

- Mãe, você precisa me dar mesada. Só assim eu vou conseguir guardar dinheiro para quando você ou o papai estiverem sem, não precisarem pedir para mais ninguém. Só para mim.
 
Caí dura para trás. Bem feito para mim.

13 fevereiro 2011

12 fevereiro 2011

Emplastro de Vinagre com Sal


Eu era pequenininha quando resolvi cruzar uma cerca de arame farpado. Me arrastei feito uma cobra no chão de terra batida para chegar depressa do outro lado. Desde pequena eu tenho pressa. Mas calculei mal o espaço para entrar. Voltei para casa carregada pela minha irmã, aos prantos, com três sulcos de pele rasgada nas costas. Foi quando eu entrei em casa que eu vi, refletido nos olhos da minha mãe, a gravidade do ferimento. O hospital ficava longe, a viagem era por uma estrada esburacada num jipe desconfortável e naquela hora, já anoitecia. Ela não teve dúvida. Foi na cozinha e voltou com um pote fundo cheio de vinagre com sal. Olhou sério para mim e disse:

- Filha, se prepara porque vai doer.

O emplastro de vinagre com sal da minha mãe era como um santo remédio. Ardia como fogo, mas me curava toda e qualquer ferida. Nunca precisei tomar antibiótico nem antitetânico na infância. Porque nada inflamava depois daquele emplastro. Naquele dia, a dor que eu senti para me livrar da dor, era como se uma faca tivesse cortando o próprio corte do arame.

Minha mãe tinha um compromisso com a verdade a respeito de dor. Quantas vezes fui tomar vacina e a enfermeira tentando ser simpática, sorria para gente dizendo: Olha fofinha, não vai doer nada tá? Vai ser bem rapidinho. E ela enfurecida saia atropelando a mulher, para ajoelhar na minha frente e dizer: Isso não é verdade, filha. Isso é uma injeção e vai doer sim. Mas é pro seu bem, você precisa passar por isso. Depois fulminava a enfermeira com o olhar e mandava na lata: Não se mente para uma criança. Se eu lhe disser que não vai doer e depois ela sentir dor... como é que vai confiar em mim de novo?

Tenho pouquíssima tolerância à dor. Sou como a personagem de Michelle Pfeiffer em “As Bruxas de Eastwick”. Meu maior medo nessa vida é de sentir dor. E mesmo assim, já fiquei 18 horas em trabalho de parto, passei por duas cesarianas e fiz outras cirurgias ainda piores. Mas isso tudo porque sei que sempre vai existir um espécie de emplastro de vinagre com sal para me curar as feridas do corpo.

Mas e as feridas da alma? Com que tipo de emplastro a gente cura as feridas de dentro da gente? Tive um namorado que me ensinou que o coração é como um orgão perdido porque jamais se regenera. Cada amor que começa e termina, leva consigo um pedaço. Ele contou que seu coração já tinha levado três mordidas. E que eu ali, terminando nossa história, estava dando a quarta mordida. Sim, era eu que partia. Mas partia com o coração menor também, e por causa dele. 

Nesses últimos dois anos tenho pensado muito de que forma posso amenizar a dor dos machucados que tenho feito tentando atravessar as cercas da vida. Mas não conheço nenhuma espécie de emplastro para as feridas da alma. Como se faz para cicatrizar uma mágoa, se ela só existe no centro de um peito imaginário? Dizem que o tempo é o melhor remédio. Não creio. Tempo não é curativo, é substantivo. Ele pode até apaziguar um sofrimento, mas não cura, não soluciona, não restabelece a saúde de um sentimento moribundo.

Outro dia aprendi com uma amiga que a cada mil lágrimas sai um milagre. Será que é na lágrima que mora a essência do meu emplastro existencial? Será que é no pranto que se desinfetam as lesões provocadas pelo desamor, pela raiva contida, pelo ciúme doentio, pela decepção velada, pelo ressentimento corrosivo, pela amargura do desencanto? Se for, que esse líquido salgado e sagrado me lave as entranhas sem ardor. E que eu possa ter coragem de continuar me aventurando a atravessar todas as cercas de arame farpado, até as mais perigosas e enferrujadas. Porque de chorar… bom… de chorar eu não tenho medo não.

Para Gleice, que me ensinou o que é milágrima. 

07 fevereiro 2011

A Liquidez da Compreensão



Um dia fui numa mãe de santo que me disse assim:

“Fia, suncê tem que escrever com humor.”

Torci o nariz. Humor? Mas essa preta velha incorporada nessa moça bonita acha o quê hein? Que é todo dia que a gente tá para alegria? Só consigo escrever com humor ou quando eu tô muito inspirada ou quando meu estado de espírito acabou de chegar de férias do Caribe. Não é todo dia que a gente tá solar e vê o mundo colorido. Caramba, tem dias que saio da cama com uma lente cinza chumbo nos olhos que não há Cristo que me tire aquele ânimo gris da alma. Melancolia pura.

Parecendo ler meus pensamentos, a preta puxou um tanto do cachimbo, soltou aquela fumaça cheirosa em cima de mim e falou:

“Num é esse humor que ocê tá pensando. Tô falano daquele humor, aqueles líquido que a gente tem no corpo e governa o coração. É com eles que suncê tem que escrevê.”

Hã?

Demorei um tempão para processar aquela informação. Só quando cheguei em casa e fui procurar no dicionário a palavra humor, é que vi numa tacada só, todas as fichas da minha vida, caindo em cima de mim, como naquelas máquinas de cassino, quando te premiam 1000 mil dólares em moedas de um.

Humor são todos os líquidos secretados pelo corpo e que determinam sua condição física, mental e emocional. Genial! Devia ter enchido aquela preta velha de beijo. Como é que eu não tinha entendido isso antes? Usar o humor como guia para o que escrevo, é nunca mais desperdiçar uma alegria ou tristeza sequer. É não me envergonhar da raiva, é grifar o amor, é permitir o negrito de tudo que vejo com as minhas lentes cinza chumbo. É entender que meu barco pode confiar na bússola que pulsa no meu sangue, porque é justamente lá nas minhas veias, que está o melhor e mais confiável oceano para navegar.

Descobri com meu compadre Houaiss, que existem os humores oficiais: o sangue – aquele que faz a gente ferver de raiva ou de paixão, a fleuma que é causadora da apatia, a atrabílis ou bile negra que é responsável pelo último grau da raiva... a cólera, e a bile amarela, aquela que faz a gente ficar com o pior e mais nefasto mau humor!

Mas com a licença poética que me concedeu minha preta velha, depois daquele dia, comecei a pensar em todos os nossos líquidos - mesmo os que não estão catalogados no Houaiss - como outra forma sublime de entender a magnificência da natureza ao criar, por exemplo, a lágrima.

Pode existir coisa mais poética do que uma lágrima? Aquele líquido límpido e salgado que verte de dentro da gente por dor ou emoção exagerada? Viviane Mosé já dizia que: um olhar de lágrimas cristalizadas é como um vidro de carro batido.

Suor acho meio nojento. Também é salgado e geralmente tem companhia de odores fortes de origens quase sempre duvidosas. A não ser o suor que vem do amor. Esse suor é santo. Dois corpos encharcados de suor podem ser considerados sagrados. Talvez porque se misturem aos líquidos do sexo: os fluidos vaginais e o sêmen. Nesses humores estão contidos todos os segredos da humanidade. Nossa origem, nossa semente, nossa evolução. Isso sem mencionar a saliva, o único humor que tem o poder de consagrar no beijo, a história de uma grande amor.

Entender os humores do meu corpo me fazem entender muito mais coisas do mundo. E principalmente desse pequeno planeta que habitamos. Se os humores da Terra forem como os humores humanos, dá para entender perfeitamente porque o planeta hoje chora mais... do que jamais choveu. Não dá?

Que a liquidez da compreensão possa a partir de hoje, expandir minha consciência. É por isso que vim, é por isso que escrevo, é por isso que vivo. Amém.