Eu era pequenininha quando resolvi cruzar uma cerca de arame farpado. Me arrastei feito uma cobra no chão de terra batida para chegar depressa do outro lado. Desde pequena eu tenho pressa. Mas calculei mal o espaço para entrar. Voltei para casa carregada pela minha irmã, aos prantos, com três sulcos de pele rasgada nas costas. Foi quando eu entrei em casa que eu vi, refletido nos olhos da minha mãe, a gravidade do ferimento. O hospital ficava longe, a viagem era por uma estrada esburacada num jipe desconfortável e naquela hora, já anoitecia. Ela não teve dúvida. Foi na cozinha e voltou com um pote fundo cheio de vinagre com sal. Olhou sério para mim e disse:
- Filha, se prepara porque vai doer.
O emplastro de vinagre com sal da minha mãe era como um santo remédio. Ardia como fogo, mas me curava toda e qualquer ferida. Nunca precisei tomar antibiótico nem antitetânico na infância. Porque nada inflamava depois daquele emplastro. Naquele dia, a dor que eu senti para me livrar da dor, era como se uma faca tivesse cortando o próprio corte do arame.
Minha mãe tinha um compromisso com a verdade a respeito de dor. Quantas vezes fui tomar vacina e a enfermeira tentando ser simpática, sorria para gente dizendo: Olha fofinha, não vai doer nada tá? Vai ser bem rapidinho. E ela enfurecida saia atropelando a mulher, para ajoelhar na minha frente e dizer: Isso não é verdade, filha. Isso é uma injeção e vai doer sim. Mas é pro seu bem, você precisa passar por isso. Depois fulminava a enfermeira com o olhar e mandava na lata: Não se mente para uma criança. Se eu lhe disser que não vai doer e depois ela sentir dor... como é que vai confiar em mim de novo?
Tenho pouquíssima tolerância à dor. Sou como a personagem de Michelle Pfeiffer em “As Bruxas de Eastwick”. Meu maior medo nessa vida é de sentir dor. E mesmo assim, já fiquei 18 horas em trabalho de parto, passei por duas cesarianas e fiz outras cirurgias ainda piores. Mas isso tudo porque sei que sempre vai existir um espécie de emplastro de vinagre com sal para me curar as feridas do corpo.
Mas e as feridas da alma? Com que tipo de emplastro a gente cura as feridas de dentro da gente? Tive um namorado que me ensinou que o coração é como um orgão perdido porque jamais se regenera. Cada amor que começa e termina, leva consigo um pedaço. Ele contou que seu coração já tinha levado três mordidas. E que eu ali, terminando nossa história, estava dando a quarta mordida. Sim, era eu que partia. Mas partia com o coração menor também, e por causa dele.
Nesses últimos dois anos tenho pensado muito de que forma posso amenizar a dor dos machucados que tenho feito tentando atravessar as cercas da vida. Mas não conheço nenhuma espécie de emplastro para as feridas da alma. Como se faz para cicatrizar uma mágoa, se ela só existe no centro de um peito imaginário? Dizem que o tempo é o melhor remédio. Não creio. Tempo não é curativo, é substantivo. Ele pode até apaziguar um sofrimento, mas não cura, não soluciona, não restabelece a saúde de um sentimento moribundo.
Outro dia aprendi com uma amiga que a cada mil lágrimas sai um milagre. Será que é na lágrima que mora a essência do meu emplastro existencial? Será que é no pranto que se desinfetam as lesões provocadas pelo desamor, pela raiva contida, pelo ciúme doentio, pela decepção velada, pelo ressentimento corrosivo, pela amargura do desencanto? Se for, que esse líquido salgado e sagrado me lave as entranhas sem ardor. E que eu possa ter coragem de continuar me aventurando a atravessar todas as cercas de arame farpado, até as mais perigosas e enferrujadas. Porque de chorar… bom… de chorar eu não tenho medo não.
Para Gleice, que me ensinou o que é milágrima.
Tati, não sei o que cura, mas acho que viver a ferida, a dor, já ajuda...ao menos a viver o que tem que ser vivido, né? Sem infeccionar nem gerar outros problemas.
ResponderExcluirbeijo
Re
PS: Amo sua mãe :-)
Oi minha carioca preferida.... ja estou com saudades...falamos sobre isso comendo empadinhas...lembras??? Realmente.. tempo nao cura... mas acalanta...depois de muitooo tempooo..por isso ele é tao "malvado"...
ResponderExcluirSerá isso a vida? Uma parte dela? Acho que sim... uma parte porque... tem tantas "outras partes" pra serem vividas intensamente nao é?
Voce sabe disso.. tens energia de sobra pra colocar num cantinho o "pedaço malvado"da vida...
beijos no seu coracao... AMOOOO VOCEEEEE
Galega
Tati, que texto verdadeiro!
ResponderExcluirFiquei feliz ao saber que mais alguém, além de mim, tem intolerância à dor que, com certeza, é um dos meus maiores medos.
Uma vez, escutei de uma pessoa muito querida que a alma é sábia. Não sei se a sabedoria da alma precisa de algum remédio para se curar, mas sempre escutei que o tempo é o melhor remédio. De fato, não sei se o é, mas busco, diariamente, pedacinhos do tempo para fazer o patchwork da parte que mais gosto da minha história.
Amei ler sobre a Irene mãe, pois o que mais gosto dela, além de sua voz, que me encanta, é sua sinceridade e seu compromisso com a verdade.
Beijo carinhoso,
Lívia
Mas às vezes eu gostaria de que as dores da alma pudessem receber o bálsamo da árvore mais próxima tão florida que está, ou das asas do pássaro que pousa na minha varanda. Talvez não a cura, mas o consolo de uma noite bem dormida... Pelo sim, pelo não, faço minhas orações para não transformá-las em males físicos. Isso é um perigo, meu Deus! Como diz Deepak Chopra, "somos as únicas criaturas na face da terra capazes de mudar nossa biologia pelo que pensamos e sentimos!" Já o tempo... ele é mestre em fazer cicatrizes e é justamente ali onde a pele é mais forte...
ResponderExcluirAmada!!!
ResponderExcluirNossa, vinha lendo o texto e pensando "vou colocar todo ele no meu blog, sem tirar nem um pedacinho! Preciso colocar no meu blog!!" E eis que me deparo com uma dedicatória! Amei! Obrigada pelo carinho!
Sabe, o motivo do meu entusiasmo (e só saber no final que o texto foi dedicado com delicadeza a mim não influenciou esse meu sentimento)foi que me perguntava durante a leitura "gente, eu nunca me arrisquei assim, a tati é louca!rs" Sim, mas falta tanta loucura em mim. Sempre passei longe de arames farpados, e para qualquer machucado tomava um analgésico. Mas eis que um dia eles, os arames, apareceram no meu caminho...era preciso passar, perder, arriscar, deixar-se cortar, viver o novo. Acho que foi esse tal ar-ame que sangrou o meu coracao, e tenho preparado eu mesma o emplastro milagroso, com doses homeopáticas de lágrimas feitas de vinagre, água e sal. Todos os dias, gota a gota, uma a uma, elas vão curando as feridas do corte profundo.
Bjos, gleice.
Tati, voce apareceu de repente no meu condominio... tão silencioso...rs. Suas pequenas fizeram tanto barulho em minha familia, consquistando a todos nós lá em casa. Cada palavra e sorriso da "Catalina" foi como mel nos nossos dias... e a Clara... sua esperteza de menina-moça nos fez olhar com tanto carinho... Minhas pequenas são apaixonadas por elas...
ResponderExcluirO mais engraçado é que você tem um jeito de olhar a vida muito parecida com a minha. Sempre me achei um pouco meio louca..por olhar tanto o pequeno e por viver apaixonada por alguém tão distante do meu modo de ser e pensar... minha metade é muito realista... vive no mundo atual, de coisas práticas e objetivas. Mas mesmo passando por "arames farpados" de vez enquando tenho muito amor por ele. Já ferimos muito a alma... ja fechamos feridas... mas de vez enquando elas sangram, né?? Pois a verdade é que não existe mesmo o emplasto que nos cura das cicatrizes da vida... elas são nossas marcas e nossos degraus.
Um grande beijo, Karla
"A menina mudou-se para o interior, e no primeiro dia a caminho de sua nova escola, se deparou com uma cerca de arame. Ao tentar cruzar a cerca, cortou-se com o arame farpado... No segundo dia, a menina tentou pular a cerca, e outra vez se cortou... No terceiro dia, a menina olhou para a cerca, e sentindo-se muito orgulhosa tirou de sua bolsa um instrumento, e com maos certeiras cortou o arame, abrindo caminho na cerca; ela cortou somente a mao enquanto tratava de cortar a cerca. No quarto dia, ah, no quarto dia a menina mudou o caminho a escola...”
ResponderExcluirFruzinha coisa minha,
ResponderExcluirMe sinto distante, não de você, mas nos momentos que estamos, que são tão diferentes.
Nosso emplastro é nosso café, que não cura mas nos ajeita pra lá.
Te espero do lado de cá, e sei que você vem também...
Todo amor! E pé e mão pra ajudar...
Tatiana, amei o seu blog, esse texto, porque tô com uma ferida bem grande na minha alma nesse momento ... mas não sei se já chorei mil lágrimas! Com certeza, preciso de um milagre ... mas já vai ser ótimo fazer o "Círculo mágico" amanhã com a Irene e você ... quem sabe aí não está um pouquinho da minha cura? Obrigada por sua escrita tão linda!
ResponderExcluirAna Gibson
você falou do vinagre com sal (compressa) para ferimentos. É realmente um santo remédio. Igualmente manteiga com açúcar para queimaduras. Um abraço. Timóteo -
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