29 agosto 2009

Urgência artística



Final da tarde. Céu azul já pintado de laranja. Praça XV frenética com seu vai-e-vem de gente correndo para alcançar a barca. Debaixo do viaduto um homem solitário, recostado numa cadeira quebrada, sola sua guitarra num som estridente, com os olhos vidrados em algum lugar muito longe dali. O amplificador - a um passo de quebrar também - não parece amplificar sua música e sim a angústia de sua urgência artística, essa que assolam os artistas do mundo, que mesmo sem ter condição ideal de se manifestar, encontram sempre um viaduto e transeuntes surdos para lhes ouvir.

Depois de me despedir silenciosamente do músico, sigo meu rumo em direção ao CCBB. Nesta noite eu vou assistir uma peça sobre Clarice Lispector. Quando de repente me lembro do Café Livraria Arlequim. Eu estava louca por um café. Ah, que delícia sair do ar viciado e carbônico da Primeiro de Março e poder entrar num mundo paralelo, apenas atravessando uma porta de vidro. As livrarias definitivamente tem um cheiro divino, principalmente as que se misturam com café. Essa alquimia ainda pode se tornar mais curativa, quando além do olfato você cuida dos ouvidos. Quando entrei tive que disfarçar meu prazer: tocava um tango... belíssimo! Entrei, fechei os olhos, respirei fundo e disse para alguém que não ouviu: obrigada pelo instante! Ah essa fartura sensorial e criativa de que é feito o mundo!

Sem dúvida alguma, eu também sou uma criatura que sofre de urgência artística. Com a vantagem de me alimentar não só das obras de arte, mas como também da arte que a vida nos dá. No cotidiano, nos sentidos, no observar a vida e se inundar dela. Outro dia ganhei um presente da vida. Eu voltava para Niterói de 996 e me deliciava com aquela beleza absurda do sol refletindo seu brilho na água do mar - quando consegui me deparar com uma cena ainda mais linda dentro do ônibus. O trocador, quieto e concentrado, fazia um origami de pássaro numa nota de dois reais. Lá estava mais um artista com urgência de expressar sua alma.

Saramago diz que “todos somos escritores, só que alguns escrevem, outros não.” Eu diria que todos somos artistas, só que alguns tem pressa, outros não.




25 agosto 2009

O LUGAR A QUE PERTENÇO



Existe um lugar onde o tempo não existe.
Onde não existe a vida como ela é. Só como se sonha viver.
É um lugar secreto, poucos tem coragem de ir. Poucos ganharam o mapa para chegar até lá.

Eu já estive neste lugar. Há muitos e muitos anos atrás. Estive e encontrei um tesouro. A melhor e mais forte versão de mim mesma. Mergulhei fundo em cada história vivida. Bebi das fontes mais preciosas. Caminhei por vielas esfumaçadas de gelo seco. Fiz malabarismos com palavras, me alimentei dos mais famosos poetas, me embriaguei de idéias malucas e imperfeitas. Atravessei paredes, encontrei dimensões paralelas, sobrevoei histórias fantásticas, me emocionei com as mais tristes. Cantei, dancei, presenciei intervenções divinas e o nascimento da arte inúmeras vezes, através de úteros jovens, maduros e muitas vezes, anciões.

Foi lá, nesse lugar, que pela primeira vez eu entendi a vida. E vi sentido nela. Num lugar onde não se exige explicação ou razão. Que só se clama por emoção e pela corajosa capacidade do ser humano em ser livre.

Por isso, hoje... Hoje eu escrevo aos quatro ventos essas palavras e as transformo em passos largos que me levarão de volta ao lugar que pertenço. Lavarei minha pele com todas as palavras líquidas que houverem até conseguir fazer ressurgir nela, o mapa do tesouro que eu tinha tatuado em mim. Escrevo para sacramentar de vez com os deuses esse meu desejo labiríntico de voltar ao único lugar que nunca deveria ter saído. Por isso, hoje... Se for preciso, não só escreverei, como gritarei em praça pública:

Um dia eu voltarei ao teatro!
Antes que eu morra - de novo - eu voltarei ao teatro!
...
(Este texto é dedicado ao meu primeiro professor de teatro Ernesto Piccolo, que sempre me fez acreditar na magia absoluta do teatro e na paixão que ele pode exercer na vida de alguém!)

20 agosto 2009

A luz da vela e o holofote



Eu ontem passei a noite em claro, olhando a chama divina da vela, para ver se via alguma luz na escuridão da minha existência. Não há um só dia na minha vida em que eu não me pergunte: meudeusdocéu, o que é que eu vim fazer aqui?
Nasci com uma extraordinária sensibilidade para as coisas do mundo. Minha infância foi um universo perfeito como devem ser os primeiros anos. Transitei por entre as dimensões paralelas onde todas as coisas mágicas estão, experimentei o mundo in natura, sem nunca me preocupar com o porquê das coisas ou das razões de Deus.
Mas eu desejei crescer e atravessar a fronteira desse mundo interno, porque tinha certeza de que como mulher - tendo posse da minha liberdade - eu poderia finalmente traduzir tudo aquilo que na infância tinha explodido dentro de mim.

A verdade é que quando entrei na idade adulta, percebi que não só tinha perdido parte das minhas asas como também não me adequava a lugar algum. Talvez tenha sido por isso minha busca pelo teatro aos 13 anos. Porque de alguma forma pressentia que na arte eu ainda poderia transitar entre a realidade e a fantasia.
Durante muitos anos eu me debati entre a necessidade de amadurecer – ganhar dinheiro, conquistar o mundo - e ainda conseguir salvar aquilo que eu acreditava ser o melhor de mim: o meu rico e povoado mundo imaginário. Mas o mundo real não é assim. E sem conseguir me firmar no teatro, como profissional independente auto suficiente, abri mão do sonho de viver da arte e talvez nela encontrar meu propósito de vida.

Um dia, sem planejar muito, veio a maternidade. A doce, sábia e trabalhosa maternidade. E sem me dar conta, percebi que uma janela de novo se abria dentro de mim. Foi cuidando das minhas meninas que eu voltei a ouvir a minha voz... aquela voz miúda que dizia: sonhe, volte a sonhar. Por falta de tempo e espaço, a única arte que me cabia entre fraldas e mamadeiras, era escrever. Então comecei a escrever e a escrever... e perceber que se eu desse atenção àquela voz que vinha lá de dentro, com tanta vontade e determinação, tudo aquilo que estava contido há tantos anos, poderia finalmente escoar de dentro de mim. Pronto. Já estava eu sonhando de novo em encontrar meu propósito. Eu tenho essa crença arraigada em mim. Que a gente vem por um propósito. Para trilhar um caminho específico. Se não fosse isso não existiria a tríplice divisora dos indivíduos: dom, talento e vocação. É uma linha muito tênue que divide o significado dessas três palavras, mas existe: dom, vem do latim e significa presente, dádiva, capacidade especial dada pelos deuses. Quem nasce com uma voz abençoada, não pode ter dúvida de seu dom. Talento também é uma aptidão, mas é diferente na origem e pode ser desenvolvido pelo treino e pela prática. Existem milhões de pessoas com talento, mas nem todas tem a obstinação e a disciplina para superarem as dificuldades que encontram pelo caminho. Já vocação é uma palavra de origem latina e significa "o ato de chamar". Quem segue a vocação obedece a um chamado. Quem nasce desejando profundamente cuidar de outras pessoas, está ouvindo um chamado interno. Logo, sua vocação o levará aos caminhos da medicina ou da psicanálise. Se ele vai ter talento para isso, são outros quinhentos.

Mas e quem tem só um amor explosivo no coração e uma paixão pelo mundo, faz o que?

Eu tenho uma amiga querida que diz que “quando fazemos algo que nos dá prazer com relativa facilidade, depois de muito treino, estaremos atendendo a nossa vocação. E que naturalmente as coisas começam a dar certo. Os caminhos se abrem. Tudo flui porque é o seu destino se consolidando.” Hum, minha conta bancária não tem percebido muito essa fluência.

Tantos anos já se passaram desde que comecei a escrever. Nenhuma realização concreta me fez crer ser esse o meu propósito de vida. Tudo bem que não tive a obstinação de um herói, a persistência de um guerreiro, a disciplina de um samurai. Disciplina. É isso que me falta. Ao invés de passar minhas noites em claro tentando achar as razões da minha existência na chama da vela, talvez o que precise simplesmente é focalizar um enorme holofote na necessidade de constância na minha escrita. Só isso.

Só o que sei é o que sinto. E só eu sei a sensação profunda de alívio que me dá escrever um texto, como esse que acabo de escrever. Ninguém sabe o quanto dói uma idéia presa dentro do peito. Já dizia a grande poeta Viviane Mosé: pessoas às vezes adoecem de gostar de palavra presa. palavra boa é palavra líquida, escorrendo em estado de lágrima.

16 agosto 2009

Experiência de Amor

Outro dia sem querer fiz uma viagem antes de dormir que me deixou surpresa. Eu fechei os olhos e vi, minhas duas pequenas, encolhidinhas na cama dormindo na maior tranqüilidade do mundo. E então aproveitei a visão e dei um beijo de boa noite em cada uma delas. Daí eu lembrei dos meus sobrinhos, que dormem lindos de boca meio aberta, e imaginei os dois, cada um em sua cama, já adormecidos. E senti esse amor profundo por eles dentro de mim, como se fossem meus filhos. Então de repente, me deu um impulso de sair voando por aí, visitando pessoas da minha família, amigos pelo mundo, fazendo na verdade uma jornada interna, lembrando de todas as pessoas que eu amava e sentia saudade.

A experiência foi incrível. Porque eu consegui visualizar todas as pessoas que desejei. Aconchegadas entre travesseiros e cobertores, em estado profundo de sono, algumas encolhidas como minhas bonecas, outras espalhadas pela cama, cada uma eu inventei de um jeito. Mas dentro de mim, o que batia mais forte – sempre – era essa divina possibilidade de poder amar a cada uma daquelas pessoas, num simples gesto de dar-lhes boa noite. Foi umas das experiências de amor mais fortes que eu já vivi. Uma viagem que eu tenho desejado repetir todas as vezes que preciso me alimentar dessa egrégora que me fortalece, esse círculo de amigos de alma que eu ganhei da vida, que são hoje meu elo mais forte com o mundo.

O Mistério Musical da Miguel de Frias

Ontem descobri a verdade sobre o mistério musical da minha rua.
Todos os dias estava acordando, por volta das cinco e meia da manhã, com uma pessoa cantando muito alto em plena Miguel de Frias deserta e silenciosa. O homem – nitidamente a voz era de um homem – cantava a plenos pulmões como se estivesse no palco do Teatro Municipal, adorando o eco que a rua fazia. E como era bonita aquela voz!
No primeiro dia tive certeza de que estava sonhando. No segundo, tive um deja vu. No terceiro tive um treco e fui olhar na janela o que era aquilo. Nada. Ouvia-se apenas o eu queria ter na vida simplesmente, um lugar de mato verde para plantar e para colher... hã? Eu adoro essa música... ter uma casinha branca de varanda, com quintal e uma janela, para ver o sol nascer... Fui deitar achando que estava ouvindo coisas. E nas semanas que se passaram, como ele renovou muito pouco a seleção musical, eu acabei achando que tudo aquilo fazia parte de um delírio mesmo, de um sono truncado pelas minhas noites mal dormidas.
Mas ontem, ontem eu não agüentei. Minha porção Hercule Poirot travou uma batalha de perguntas e investigações minuciosas com os porteiros e vizinhança para tentar descobrir o que havia de fato por trás dessa história. Tão simples: “Sim Dona Tatiana, esse barulho que a senhora escuta é um velhinho que todos os dias vem vender café e chocolate quente para o pessoal da obra aqui da redondeza.”

A vida é simples. E maravilhosa. Qualquer dia desses, é claro que eu vou descer para tomar um café com esse velhinho. E descobrir quem ele é.


05 agosto 2009

Sobre vida, morte e vegetais



Assisti essa semana “A Partida”, o filme japonês que ganhou o Oscar de filme estrangeiro. Assisti porque minha irmã olhou fundo nos meus olhos e disse: “Você tem que assistir esse filme.” Tá bem, eu nunca questiono esse tipo de ultimato. E apesar de não gostar muito de filme japonês, em questões cinematográficas eu procuro sempre combater a ferro e fogo qualquer conceito pré-concebido, porque sei que muitas vezes é na história mais estranha ou esdrúxula, que pode vir o maior ensinamento que a arte pode me dar em determinado momento. Então já que era pra eu ir, fui e mergulhei fundo na história. E voltei calada, com o rosto molhado de tanto chorar, remexida nas vísceras e com um monte de questões para pensar.

Mas o que transbordou e me tirou o sono desde então, foi justamente a questão que está sempre me espreitando atrás da porta: o preconceito. Caramba, se tem uma coisa que me deixa de cabelo em pé, com a veia do pescoço saltada, espumando e com o olho vermelho de raiva... é o tal do preconceito. E mesmo tentando sempre ser uma pessoa justa e tolerante, eu ainda me pego muitas vezes com a boca na botija, julgando uma coisa sem conhecer a fundo, opinando sobre algo que nem sempre tenho o direito de.

Eu sempre tive o maior preconceito com médico-legista. Achava que uma pessoa que escolhia como profissão viver debruçado sobre cadáveres, tinha que ter algum tipo de desvio de comportamento. Porque eu própria tinha um total e absoluto estranhamento de corpos de pessoas mortas. Vamos combinar que quase todo mundo tem. É um mistério profundo para gente. Me lembro quantas vezes me peguei pensando nos milhares de corpos se soltando dos escombros do avião da Air France no fundo do mar. Imaginava aquela cena e não dormia mais. Me lembro de olhar para o corpo da minha tia-avó no caixão e dizer: “Mas onde foi parar aquela alegria?” Só sei que depois de assistir ao filme, muitas coisas dentro de mim se dissolveram e tomaram outra proporção.

A história do músico desempregado que só arranja emprego como nokanshi, apesar do preconceito de todos e dele mesmo, é uma lição profunda sobre a morte... e a vida. Na cultura japonesa, a profissão de 'nokanshis' é uma combinação entre agente funerário e religioso, mas não é exatamente nenhuma das duas ocupações, é algo único. Um nobre trabalho de lavar, vestir e preparar os corpos para os parentes enlutados e ajudá-los numa melhor travessia. Tanto para quem morreu, como para quem ficou.

Tem uma cena ótima em que o chefe dele se atraca com uma coxinha de galinha, logo depois de ter cuidado de um corpinho que estava há mais de duas semanas morto. Ele, totalmente enojado, constata então a morte do pobre animal. “Sim – diz o senhor – estes estão melancolicamente mortos”. Naquele momento me bateu como um soco no estômago meu difícil processo de estar sempre tentando vegetariar. Já perdi a conta de quantas vezes tive que me explicar, em brigas homéricas, por não querer comer coisas que tenham olhos. Já perdi a conta de quantas vezes me aborreci por enfrentar o preconceito das pessoas, que acham que eu me acho superior porque não como carne. Meu Deus, eu vivo uma luta diária. Sou praticamente uma vegetariana anônima, porque enfrento todos os dias, todos os tipos de dificuldades. O mundo não é vegetariano e por isso existem poucas alternativas para quem não come carne e o que tem é sempre mais caro.

Mas enfim, Anna Sewell, escritora inglesa, disse uma frase assim:
“Se nós vemos coisas erradas ou crueldades, as quais temos o poder de evitar e nada fazemos, nós somos coniventes.”

Isso vale para qualquer tipo de preconceito.

Que eu possa sempre combater meu preconceito aos carnívoros, que eu possa me perdoar por ter sido tão cruel com os médicos-legistas e que o Cinema possa sempre me dar vários tabefes na cara, me fazendo acordar para a vida e me ensinando de forma lúdica, a ser uma pessoa melhor a cada dia – ou a cada sessão. Amém!